Parece que elevamos as orelhas a outro patamar nesse período de pandemia. Agora atendem ao chamado das máscaras. Passou todo o ano de 2020 em conluio com o pano que nos cobre o rosto, por vezes as machucando, por vezes as dobrando. Em sua convocação cotidiana, ainda as adornamos com esses fonezinhos, tão ao gosto das modernosas reuniões pela internet. As orelhas se tornaram símbolo da resistência. Oprimidas por dentro, por fora, pelas abas, estão elas resistindo à opressão contumaz da pandemia de Covid-19. Mas não para sempre. Algumas já cederam ao descaso.
Penso muito nos enfermeiros e médicos que – caso tenham tempo – estão rindo da falta de nossa intimidade com as máscaras, de como nossas orelhas se tornaram pontiagudas de uma hora para outra. Todas se transformaram em captadores frontais do som, as orelhas não mais olham para os lados. Elas, que um dia desses aí organizavam os vastos cabelos das meninas e dos metaleiros, ou que se escondiam em cortes charmosos, passaram a ter protagonismo. Os mais jovens, que já as tinham enchidos com esses trequinhos absurdos que hoje se penduram sem fio, desafiam a necessidade da máscara, que só são vestidas se não desencaixaram os fones. Diga-se de passagem, alguns são enormes, escondem toda a orelha, fechando-as em um mundo totalmente paralelo de som e fúria. O fio da máscara, que puxa o óbulo auricular dos ferinos para frente, é constantemente removido. A orelha abastada de modernidade não atende ao anseio contemporâneo. E o camaradinha não sabe como pegou a tal Coronavírus.
Lembro-me das mães, quando eu era garoto, que faziam questão de esconder em gorros as orelhas avantajadas dos meus amiguinhos. Na real, eles que me acompanhavam, pois o orelhudo era eu.
Se Brás Cubas um dia se pegou a filosofar sobre os pés e narizes, estaria agora a filosofar sobre as orelhas, como eu estou. Na verdade, estou lavando a alma de toda uma vida. Surge agora toda uma sociedade – mundial, diga-se de passagem – em que coloca as orelhas em outro patamar de supremacia. Tudo bem, algumas máscaras rodeiam toda a cabeça, nem exigindo das orelhas o suporte, mas já viu como esse tipo de máscara parece criar uma moldura, deixando a orelha em evidência? É aqui que reside até uma pena, tanta orelha em destaque, porém tão poucos a aceitar o que elas tanto ouvem.
O que se vê por aí – pelo claro produto de não se ouvir – é o uso das orelhas congestionadas de zumbidos e esquizofrenias que nublam a capacidade mais simplista de se tomar decisão por ter ouvido o óbvio. Ouvir: ação que há anos parece ser um luxo, exercício exótico de alguma empatia que ficou no passado, tão em xeque nesse momento de pandemia. Alguns mais saudosos gritam para que todos escutem. Ainda existem essas pessoas que se preocupam com a coletividade, com os outros, que pedem para que todos fiquem em casa, ou se protejam mais. No entanto, sabemos que desde a invenção e ascensão dessas redes sociais virtuais – que mais segregam amigos do que unem – ouvir e ler entrou em desuso. O opinar se tornou um exercício de ctrl c + ctrl v de algum outro. As orelhas, que nada enxergavam, hoje estão blindadas e exauridas. Cegas e surdas. Incapacitadas.
Vem à mente uma antiga propaganda de cotonetes. Um boneco azul dançava, enrolado em uma toalha de banho, e usava um palinete daquele para secar as benditas. Talvez esse seja um bom exercício à contemporaneidade. Tirar um momento e limpar tudo, cada fresta delas, em respeito a tudo pelo que sofrem hoje e que ainda vão continuar a sofrer: enquanto não tivermos a vacina, teremos de usá-las e usá-las.
Aguentem só mais um pouco. 2020 já se foi. 2021 parece que daremos algum descanso a vocês duas.