
Coluna de Márcio Calixto

Radicais livres
Toda e qualquer viagem tem como pressuposto liberarmos as toxinas de uma vida estafante, de remendos agressivos e, por vezes, tormentosas, a ponto de nos deixar zonzos, incapacitados em si mesmos. Por termos um filho, eu e minha esposa vivemos as nuances do cuidado, que mais a acomete em função da fase da vida de nosso pequeno, ainda bem pequeno. Ela, tomada pelo desejo de renovação espiritual, disse-me que viajaríamos no carnaval. Não era o que permitia nossa conta bancária, mas ela disse que iríamos e fomos. Tudo organizado, malas na Brabuda. Hora de estrada.
Meu carro é uma pluma na estrada. Seu tamanho enorme não condiz com sua dirigibilidade. Seu motor 3.7 v6 esconde-se na leveza do asfalto. Aliás, a esse, é preciso abrir um parêntese, tem sido cada vez menos comum a presença daquele asfalto lunar, bem cheio de buracos. Só quando temos áreas mais remotas é que encontro asfalto ruim. Nada que seja um problema para o Jeep. Ele desliza, flutua sobre o asfalto, como um barco em maré mansa. O destino: Paraíba do Sul.
Lá encontraríamos meu cunhado e sua namorada, acompanhada da filha. Desta vez, estaríamos só nós três, não iríamos com meus outros filhos. Sofia viajaria com a mãe para fora do Brasil. Arthur estava também com sua mãe, em uma viagem com a família. Ficamos eu, Théo e Juliana em uma área de camping. Eu me contento com pouco, costume de um passado de ausências. Ju, que também viveu passado semelhante, não quer mais o simples, para ela, o desejo é sempre pelo pleno, pelo conforto, pelo completo, substantivos que hoje cobram um preço alto. Quem já viveu a experiência do camping tradicional, sabe bem que a oferta é de uma experiência na natureza, quase como um retorno a algo bem anterior à vida urbana ou quase próximo a algo tribal. Para os mais aficionados, é quase um retorno à animalidade primordial da vida. Claro, como humanos, sempre será impossível vivenciar o todo da experiência animal. Em suma, camping é o inverso do luxo – sei que hoje existe o glamping, mas já é outra história e outra perspectiva. Levei meu material de camping e, três horas depois, chegamos.
O que havia era festa. Muita. Ju reservou um quarto – completo – na casa principal. Meu cunhado e sua namorada estavam em uma barraca, bem equipada por sinal. Vi que meu carnaval seria de Rock e churrasco. Eu, munido de uísque e charutos, já sorria pelo ambiente acolhedor.
Sabemos, pela experiência da vida – e aqui coloco no plural mesmo, eu e você, caro leitor – que ambiente não é nada sem as pessoas certas. Mesmo quando estamos sozinhos, somos a própria companhia necessária ao momento e ao espaço. Ali, obviamente, não estaria só. Por ser camping, haveria toda uma sorte de pessoas. O primeiro momento já se mostrava positivamente fantástico. Nem sempre o sambista que samba no Carnaval e minha recente alma portelense ansiava por algo mais intimista. Juliana acertara em cheio.
Quando finalmente aportamos, janta na mesa, música selecionada, filho rodando pelos colos, vi que Bruna, a namorada de meu cunhado, conhecia a todos pelo nome e com intimidade. Não demorou muito para Juliana colocar seu carisma magnético a toda prova. Em dez minutos, ela já possuía aquela intimidade de amigos de infância. Eu tenho algum carisma, alguma extroversão, pelos anos de sala de aula, pelo brevíssimo período fazendo teatro, para vencer a timidez. Esta, no entanto, se conserva, como reflexo primordial da minha família, sempre afeita aos silêncios. Inclusive, no romance que ora escrevo, os homens são profundamente silenciosos. Característica de minha família que trago para dentro da literatura. Aqui, porém, não sou personagem masculino de mim mesmo, por ser uma crônica, essa fronteira se vence e o que se lê é a minha voz rabiscada de internitudes. Como gosto delas, minhas internitudes. Para poder percebê-las, eu preciso ser introspectivo e avaliativo. Pego-me pensando sempre e percebo que estou usando muito esse advérbio no texto – preciso estar em contemplação e audição. Sensível ao que o mundo tem a me mostrar.
Com o tempo, a intimidade com a vida parece sussurrar soluções para os problemas que temos. É sempre dever (ele de novo) do camarada que escreve dar voz a esses meneios. É o que ora faço, depois de acessar a intimidade daqueles que ali estavam conosco. Prefiro destacar nesse primeiro momento o grupo de motociclistas desta vez vestidos de motorhomes chamados por Radicais Livres.

O nome é fantástico. Sou fã das ambiguidades que se conservam nas ideias. O nome dado ao grupo não carece de explicações, seria muita pretensão minha me colocar nesse papel profissional e vil. Seguir a um Carnaval em um campo já nos era de pura Liberdade. Eu e Juliana não nos podemos nos chamar de radicais. Um momento de nossa vida explora sensatez e complacência com as necessidades do Théo. Em Paraíba do Sul, local onde estávamos, era para ser retiro e leveza. Encontrei um espaço transformador e sinérgico, em que vejo a chance de repetir a experiência pelas pessoas que ali estavam. O grupo é de amigos da Bruna, outra mulher com espírito gregário e enaltecedor, como Juliana. Em especial, vou tecer considerações a dois nomes: Arlindo e seu filho Arthur. O primeiro é o presidente do moto clube. Durante a pandemia, vendeu uma de suas motos e fez seu motorhome, vale salientar que, sendo mecânico e colocou sua experiência à prova na execução de Berenice, um ônibus-casa que hoje acompanha a sua família. É pai de Arthur, professor de história, em início de carreira, macumbeiro da melhor estirpe, ser em profusão intelectual, foi com quem mais troquei nesse período. Por ser filho de Iemanjá, Ficamos o tempo todo na piscina, ou com um copo de uísque cheio e fumando charuto.
Com ele, fumei 2 Perla del Mar Shade – um de meus preferidos – e o com o outro, um “Pérola do Mar”, para um filho da “Pérola do Mar”. Tudo casava no feliz.
Desse encontro, foi impossível não fazer remissão ao meu filho Arthur. Imaginei-o com 24 anos, eu e ele conversando trivialidades intelectuais. Meu filho já se mostra seguindo alguns caminhos iguais ao meu, como no desenho. Conversar com o Arthur, filho de Arlindo, era supor um caminho positivo ao meu filho. Por diversas vezes o meu silêncio na audição era em função de me conter. Será que haverá o dia em que trocarei com meu filho o que troquei com o Arthur? Depois de uma noite de puro papo e heavy metal, ao longo dos dias, vi Arlindo e Arthur trocando sobre paternidade.
Para os que me conhecem, sabem que quando olho para um lado, meus ouvidos estão em outro. Deleitei-me no papo que os dois tinham. Me coloquei no lugar de Arlindo, tão afeito a não reproduzir os efeitos de uma paternidade negativa que parece ter vivido como filho. Arthur tinha pai, um pai que lutava pela paternidade. Comovente. Sedutor. Livre. A essência do grupo em alma. O verdadeiro Radical Livre. Aquele carnaval estava completo.
Chegou o dia de nossa partida. Eu tinha mais uma obrigação. Conhecer parte da família de meu pai, que era dali daquela cidade e que, ultimamente, pelos voos das tecnologias, resolveu se ajuntar de novo. Papo para uma crônica que vem, também com muito pano para manga.
MÁRCIO CALIXTO
Professor e Escritor

Márcio Calixto. Foto: Divulgação.


Coluna de Márcio Calixto









