Porque o Jô nunca se irá

 

Costumo terminar minhas aulas desejando “Beijo do semi-gordo”. Meus alunos riem, um burburinho ou outro sobre o fato de eu fazer piada com a minha forma levemente oblonga. Nunca os expliquei o motivo afinal. Agora vou. Minha admiração por Jô é uma constante. Acordar hoje com a notícia de sua ida mexeu demais comigo. A aula terá de ser ainda mais no amor, mais do que sempre, para que as crianças não vislumbrem minha tristeza.  Jô Soares se foi. Mal sabe ele o quanto eu o tinha como espelho, inspiração mesmo. Sua partida me deixa incompleto e atordoado.  O dia será em algum ritmo automático. Não posso deixar as pessoas na mão. Porém, escrevo ao meu mestre.

Li seu primeiro romance com desejo, entusiamo e fúria. O Xangô de Baker Street é maravilhoso. Em não mais do que 10 horas eu o tinha esgotado. Miguel Solera de Lara, da Casa Recanto de Afrodite, em particular, tornara-se uma aula sobre composição de nome e fazer literário que aquele jovem oblongo de 18 anos que se rascunhava em sala de aula e na escrita poderia ter. Eu ainda estava entrando na faculdade, me imaginava diplomata, jornalista, professor e escrevia com amigos para o site Cocadaboa, de um humor rascante e debochado. Jô era tudo que eu queria ser.

Foi principalmente assistindo ao Onze e Meia que descobri Jô Soares, com uma inteligência impressionante e multitalentoso. Cresci vendo-o. Seu programa de entrevistas me fez enxergar como alguém poderia – e deveria – ser tão plural. Com carisma ímpar e sedução além da prova,  instigava no entrevistado o desejo de desnudar a própria consciência, sempre com elegante e incondicional respeito a quem ali estivesse, ele entregava o palco, fazendo despertar a delicadeza, a criticidade, o político e o talento dos entrevistados. Fazia jus à sua raiz de humorista. Quando o tiraram do ar, e ele ainda desejoso de continuar entrevistando, criou-se um hiato, uma impossibilidade de se encontrar um semelhante.

Dediquei-me depois às entrevistas envolvendo o Jô. Uma, em especial, ele afirmara que só escrevia um livro quando tivesse seu final definido. Falou sobre o Xangô. Depois, sobre o Homem que Matou Getúlio Vargas. A composição entre o real e o fictício dava um gosto especial à obra. Depois de ler quase tudo o que ele produzira, minha carreira de professor enveredou. Porém, nunca deixei de me imaginar diplomata, jornalista, escritor e humorista. A sala de aula comungou todos em mim. Passei a ter o direito a dizer “Beijo do semi-gordo. Mas a meta era ser Gordo”. Nunca em tamanho, mas como o Mestre. Um sonho distante, claramente.

Podemos até afirmar que todos somos substituíveis. O Jô nunca. Sua partida é um baque, mas não uma chance à inexistência. Por ele ser insubstituível, é também imortal. Dou-me o direito particular, então, de dizê-lo algumas palavras, meu querido mestre, meu mentor à distância: “Receba o meu beijo, o Beijo do seu semi-gordo, eu que nunca seria Gordo como você”

Vá em paz, José

 

Author

Professor e escritor. Lançou em 2013 seu primeiro romance, A Árvore que Chora Milagres, pela editora Multifoco. Participou do grupo literário Bagatelas, responsável por uma revolução na internet na primeira década do século XXI, e das oficinas literárias de Antônio Torres na UERJ, com quem aprendeu a arte de “rabiscar papel”. Criou junto com amigos da faculdade o Trema Literatura e atualmente comanda o blog Pictorescos. Tem como prática cotidiana escrever uma página e ler dez. Pai de dois filhos, convicto morador do Rio de Janeiro, do bairro de Engenho de Dentro. Um típico suburbano. Mas em seu subúrbio encontrou o Rock e o Heavy Metal. Foi primeiro do desenho e agora é das palavras, com as quais gosta de pintar histórias.

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