Os livros como eles são

Os livros como eles são

 

Thereza Christina Rocque da Motta

Depois de mais de 40 anos fazendo livros, e há 25 publicando pela minha editora, chego a mais uma encruzilhada, que me mostra como é frágil o destino humano. Tudo o que fazemos se resume a uma tênue tentativa de deixar um traço na natureza, quando muito, fazer alguns amigos, escrever algumas palavras e, por último, ser lembrado por algo que fizemos.

A escrita deve ter sido inventada por esse motivo. Sem ela, seria impossível deixar rastros. Dos hieróglifos dos egípcios à escrita cuneiforme dos sumérios, e outras que se fizeram ao longo da História, é a única forma de marcar nossa presença nas idas e vindas nesta Terra. A questão é como fazer isso.

Como editora, passo por diversas saias justas. Seja para revisar um texto, ou finalizar um livro, escolhendo capas e, por fim, colocando-o no mercado, deparo-me com situações inesperadas que nem por um sonho eu gostaria de ter de enfrentá-las. Mas elas ocorrem e então não podem ser reescritas.

Um livro é perene. De todos os objetos criados pelo homem, o livro contém a totalidade dos erros e acertos possíveis a um ser humano. Na revisão, lutamos para retirar os deslizes linguísticos que todos são capazes de produzir. Escrever é uma experiência cumulativa, quanto mais se escreve, mais se sabe escrever, porém, sem correção, haverá uma sucessão de paradoxos que nos imporão um desafio de cavá-los, pois nem sempre os erros são aparentes ou fáceis de perceber.

Toda vez que reviso, me sinto diante de um sítio arqueológico, desenterrando objetos que antes estavam ocultos e, de repente, vêm à luz. Uma revisão se faz por camadas. Por isso, a primeira pouco se vê, só por cima, reconhecendo o terreno. Aos poucos, vamos retirando a poeira sobre os vasos, sarcófagos e estátuas ali enterradas.

Lá pela terceira ou quarta revisão, conhecendo bem o assunto que foi escrito, conseguimos pinçar aquele erro escondido, que espera passar despercebido. É esse trabalho de revisão que, em geral, os autores não fazem ou não sabem fazer.

Primeiro, porque acham que escrevem corretamente quando todos erram ao escrever. Escrever sem erros é quase impossível. “É preciso reler até não querer mudar mais nada”, eu disse no 1º Mandamento do Livro. Só então o texto estará pronto. Mas há uma resistência para a autocorreção. Segundo, nem todos se lembram das regras gramaticais, ou se esqueceram, porque não as usam com frequência. Escrever é hábito, portanto é preciso praticá-lo. Terceiro e por último, a escrita melhora com o tempo. É uma evolução intuitiva e mnemônica. Ler textos de outros autores ajuda para que a nossa escrita se torne mais fluida e correta. Favor ler bons autores!

Mas tudo isso muda com o tempo. O que era correto no século XVIII e XIX, quando surgiram os romances e hoje que se escreve como dá na telha, sem conhecer o que já foi escrito, nem outros autores, perderam-se os parâmetros das grandes obras e dos grandes autores. Minto: Machado de Assis ainda continua assombrando a atual geração.

Se escrever e publicar não fossem meu ofício, eu não estaria me dando ao trabalho de escrever e publicar há tanto tempo. Mas, como sempre, deparamo-nos com encruzilhadas, em que precisamos escolher qual trilha seguir, a mais ou a menos usada, a mais ou menos comum, a ordinária ou a extraordinária, aquela que ninguém trilharia, a que ninguém ousaria seguir.

Em um poema meu em “Joio & trigo”, escrevi: “Escrever não é ofício, é miragem”. Por causa desse verso, recebi um elogio de um poeta bem mais velho, que me disse que eu havia resumido, nesse verso, que o ato de escrever transcende o ofício da escrita. E o supera por conter mais do que apenas o ato de escrever. Para isso, é preciso conhecer profundamente sobre o que se escreve e como se deve escrever – e isso faz toda a diferença.

Niterói, Primavera de 2024

Thereza Christina Rocque da Motta

 

 

 

 

 

 

 

Colunista ArteCult e editora da Ibis Libris Editora (@ibislibris)

 

Author

Thereza Christina Rocque da Motta (São Paulo, SP, 1957) é poeta, editora e tradutora. Foi Jurada de Tradução do Prêmio Jabuti, em 2018. Recebeu a Medalha Chiquinha Gonzaga da Câmara dos Vereadores, em agosto de 2021. Coordena a Ponte de Versos desde 2000, evento incluído no Calendário Oficial de Cidade do Rio de Janeiro, em 2024. Fundou a Ibis Libris no Rio de Janeiro, em 2000. Publicou Joio & trigo (1982), Capitu (2014), Lições de sábado (crônicas, 2015), Minha mão contém palavras que não escrevo (2017), O amor é um tempo selvagem, Lições de sábado Vol. 2 e A vida dos livros Vol. 2 (2018), Poesia Reunida 40 anos (1980-2020), Sheherazade: Novas lendas das 1001 noites e três já conhecidas (2022), entre outros. Traduziu, entre outros, Marley & Eu, de John Grogan (2006), A Dança dos Sonhos, de Michael Jackson (2011), 154 Sonetos, de William Shakespeare (2009), Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll e O Corvo, de Edgar Allan Poe (2020), Mais mortais que os homens, org. Graeme Davis (2021) e A última casa da Rua Needless, de Catriona Ward (2023), vencedor do British Fantasy Award, como Melhor Romance de Terror de 2022.

2 comments

  • Thereza Christina, poeta, amiga e editora. Parabéns pelo trabalho e pelo texto de uma vida inteira. Te conhecer é privilégio sem fim.

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  • Parabéns, querida editora Thereza Christina, querido poeta Marcelo Mourão e a todos que estão lançando livros! O Portal Artecult é o caminho para uma excelente divulgação!
    Sucesso!

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