
Coluna de Márcio Calixto

Foto: Freepik
O RIO DE DOIS FLUXOS
I – O primeiro fluxo do Rio
Peguei-me pensando em seus abraços. Por que deixamos de nos abraçar ao longo de todo esse tempo? Lembro quando acordávamos nos abraçando com facilidade, com felicidade. Hoje, cadê você para que possamos realizar esse abraço? Não sei se é só por falta de tempo, pela ausência física do que fez você se ir, e eu, aqui no sempre, te esperando. Terei paciência para poder construir a sorte do retorno de seu abraço, que me era tão quente, tão especialmente quente. Como amava vencer o frio com um abraço seu.
Não sei se é apenas produto de minha velhice. Com o tempo, o corpo de velho realmente fica mais gelado. Quando perdi todo aquele peso, deixando de ser um homem rotun do, o vovô Papai Noel como você gostava de me chamar, e perdi peso, perdi peso, um pouco antes de estar aqui no para sempre, e você me abraçava. Aquela quentura era tudo. Tenho saudade desse seu abraço.
Sei que tentará de novo vir. Sei que é de seu desejo aparecer para me ver. Sempre tenta. Tenta sempre. Eu sei. Eu é que não tenho mais a mobilidade de antes. Do antes. Agora eu que fico lá à espera de você chegar e ter um instante caudaloso de seu abraço. Como disse, e sei que de alguma forma me ouve, peguei-me pensando em seus abraços.
Tem algo daqui que você amaria. A forma como as coisas acontecem lembraram muito as conversas de quando você era neném. Amava conversar contigo quando você era neném. Eu amava a lucidez de suas viagens, a plenitude de suas explicações apenas usando vogais, querendo mostrar o mundo pela perspectiva de quem mais completara um ano. Eu te entendia plenamente. Mesmo. E aqui, nesse canto peculiar de músicas para sempre, tudo tem esse dedo sutil de seus desenhos maravilhosos. É um encanto.
Levei um tempo até aceitar que era aqui que me queriam. Sou um velho. Aqui é lugar de velhos. Quase todos são velhos, mas eles não falam comigo. Talvez não queiram. Talvez não consigam. Talvez não me ouçam. Eu já gritei para eles. Eu mesmo me incomodava com meu grito, porém não me ouviam. Desisti de gritar. Fui perdendo mais peso. A roupa de Noel caiu de vez, eu estava apenas com uma blusa branca, uma cueca rota, horrível. Quando vier, você pode me trazer um short, uma cueca nova? Queria também um novo par de chinelos. Os meus escapam de meus pés. Estão muito gastos. Você tem como anotar isso tudo? Eu sei que me ouve. Eu também te ouço. Às vezes, você parece morar dentro de minha cabeça. Escuto seus pedidos. Sim, avisa ao seu pai que ele deve te trazer aqui quando quiser. Ele tem as obrigações dele. Você as suas. Quando você tiver as obrigações de seu pai, atenda a um pedido meu, não deixe de sonhar os desenhos que sonha, que faz, as músicas que se canta. Não deixe, é um pedido desse seu velho.
Continuo pensando em seu abraço. Estou cada vez mais magro e com mais frio. Não quero mesmo residir sem sua quentura. Resgato memórias, as que não embaralham muito, do momento em que aprendeu a jogar bola e passávamos o dia inteiro jogando. Depois o blusão do Botafogo, nosso maior abraço, nosso Fogão. Você curtindo comigo os jogos. Discutindo comigo. Aliás como estão? Eu aqui não consigo ver muito não. Não mesmo. O sinal é péssimo. Não consigo mesmo ver os jogos. Por isso, anota aí, não deixe de me atualizar deles quando vier. Estou muito precisado daquele seu abraço. De abraços. De todos eles.
Aqui tem um cara que anda com um radinho de pilha mequetrefe, mas dá conta do recado. Quando ele vem para cuidar da grama, deixa o radinho apoiado numa dessas marquises pequenas de cimento e fico daqui ouvindo o jogo. Ele é flamenguista, como seu pai. Foram pouquíssimas vezes que conversou comigo, que acertou meu nome, que conseguiu entender o que esse velho catalão tem a dizer. Nesse tempo todo, acho que só você mesmo me entende, que busca me entender. Pensa comigo, você é hoje meu melhor amigo, e o melhor amigo vindo do meu melhor amigo, por isso, não reclame assim de seu pai, ele foi o meu primeiro melhor amigo. E foi ele que te fez. Peça para ele te trazer aqui, mesmo que seja só mais uma vez.
Aqui no para sempre tem um Rio lindo. Não sei o nome dele. Ele tem um som gostoso, relaxante. Há um brilho severo de felicidade que por vezes o barqueiro que o atravessa costuma trazer. Chegam muitos velhos por esse Rio. Ele perde brilho quando vêm crianças, e elas vem aos montes também. No entanto, chegam mais velhos. Gosto quando o rio deixa de ir para um lado para ir ao outro. Ele tem dois fluxos. É muito comum quando as crianças chegam, o Rio mudar o rumo e levá-las de volta. Houve um barqueiro que me perguntou se queria que meu rio rumasse ao contrário. Não consegui respondê-lo plenamente. Tive dúvidas. Por que fazer meu rio rumar fluxo inverso?
Hoje eu estou sentado na frente da porta. Coloquei a cadeirinha aqui na frente por esperança. Sei que você está atribulado com esses seus estudos, com esse seu crescimento vertiginoso. Quando seus pensamentos vêm para dentro da minha cabeça eu sei bem o que pensa, vejo que está pensando direitinho. Amo isso. Amo demais isso. Ver você crescendo e crescido. Gosto quando pensa em mim. Me vejo em você. Me vejo com você. A gente se sendo junto. Gosto muito. Uma lembrança desembaralha, seu pai teve uma época parecida comigo também. Só mais tarde é que desembestou ao trabalho e pouco ia lá em casa. A vida melhorou um pouco quando você veio. Redondo como eu. Com o mesmo sinal na perna que eu tinha. Depois nosso time do coração. A gente se sendo amigo.
Foi só eu emagrecer que vi sua tristeza. Você querendo esconder o medo, eu querendo abraço, os médicos não deixando você me abraçar, só sua avó no quarto, às vezes seu pai, seus tios. Sua prima era muito neném para entender. Veio o barqueiro. Naveguei. Peguei-me pensando em seus abraços. Agora lembrei porque deixamos de nos abraçar ao longo de todo esse tempo.
II – O Segundo Fluxo do Rio
Oi, Vô. Voltei.
É muito ruim ler sua lápide. É muito ruim ver sua lápide. Sei que descansa. Você precisou descansar. Vim hoje porque sou eu que estou com saudade de seu abraço. É seu aniversário hoje. Nosso Fogão melhorou. Ganhou campeonato, parece que o senhor aí, no seu para sempre, tem dado sorte.
Trouxe alguém para você conhecer. Ela não é bonita? Lembro do senhor falando sobre como a avó era a catalã mais bonita do mundo. Ela até hoje fala de você, de seus livros, charutos, de suas piadas ruins. Ela sente falta do cheiro de charuto pela casa, acredito que ela sinta saudade mesmo de reclamar do senhor fumando pela casa.
Vô, nem parece que tem tanto tempo. Não sou mais aquele menino. Cresci. Quero dizer que vou casar, que vou montar uma família e que vó disse para morar lá com ela. Quero saber se o senhor deixa? É bom que será na casa onde sempre brincamos. Não vou mexer em nada. Só num quartinho para poder montar o quarto do neném. É, ainda não sou pai, mas foi o que vó disse para fazer logo que morássemos ali. Quando ela conheceu Ju, ficou olhando muito para a barriga dela. Ela se mudou para aquele quartinho aos fundos do quintal. Depois que o senhor se foi, ela quase não mais entrou na casa. Eu cheguei a mexer lá. Vi todas as suas roupas. Olha o que eu trouxe: aquela sua blusa branca de regata que sempre usava por baixo de sua blusa do Botafogo. A blusa do Botafogo, esse short que o senhor gostava, troço esquisito, e a cueca que combina.
Lembra dessa bolsinha?
Pois bem. Hoje eu é que vou fumar um com senhor.
(barulho de pano sendo mexido, o cortador de charuto sendo usado, o clique do velho Zippo funcionando, um Cohiba Siglo IV)
Esse é para o senhor.
Era de sua coleção. O seu umidor ainda está lá cheio. Os Cohiba, os Monte Cristo, os Joya, os Perla del Mar, estão todos lá. Vovó pensou em jogar fora, por raiva, por ódio, por saudade, por refletirem sua teimosia. Porque o senhor não está mais aqui e todos queríamos que estivesse. Não, não estou chorando. Sei que não gostava quando eu chorava. Eu também não gosto. Mas esse eu vou fumar por você, pelo senhor, por tudo que o senhor foi e que agora não está mais aqui. Me tornei homem adulto, mas lembro de o senhor falar na minha cabeça para que eu nunca deixasse de ser aquele de quando eu era criança. Segui o seu pedido. Hoje desenho, faço músicas. Deixei a arte em mim. Eu sei que o senhor tinha arte dentro, só que não pode dela viver, “A Guerra não deixou. A Espanha não deixou. Franco, inclusive”.
Eu mandei lavar a tua fantasia de Papai Noel. A família está crescendo e logo teremos um novo rebento vindo. É o próximo passo. Meu pai quer usar a fantasia. O senhor deixa? Eu vou cuidar dela direitinho.
Vô, preciso ir. Tenho uma arte nova que quero terminar. Coloquei num personagem o mesmo desenho de seu bigode.
Te amo, meu Velho.
Até a próxima.
(o charuto é posto em cima da lápide)
III – Uma terceira margem do fluxo
No Rio-rio-rio, o rio, de se rir. O barqueiro volta. Ele traz um lampião e um remo.
– Quero saber se quer navegar de novo?
– Por quê?
– Lembra dele? Era seu neto, não era?
O lampião brilha mais forte. As memórias do velho reintegram-se, “Era você com quem eu conversava”.
– Sim, seu neto. Ele será pai. De um menino.
– É para eu ser o menino?
– Quer navegar? É só pegar o remo.
Nasce o menino.
Seu nome não está nos livros.
Ele é recebido pelo abraço de um pai, que ansiava abraço. Nas pernas, um sinal. O sinal. Em sina. De começo. O rio volta ao seu fluxo, por encantos, em abraços.
MÁRCIO CALIXTO
Professor e Escritor

Márcio Calixto | Foto: Divulgação


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