Quando a música é também poesia – “Construção”, de Chico Buarque

Há letras de músicas que são pura poesia porque transcendem ritmo e som e constroem imagens poéticas fortes, que despertam sentimentos que sobrevivem sem as sugestões emocionais que as melodias possuem.

Compositores como Chico Buarque, Alceu Valença, Caetano Veloso, Lenine, Arnaldo Antunes, entre outros, possuem letras que nasceram música mas poderiam ser consideradas pura literatura. Pretendo, de vez em quando, analisar uma ou outra letra de grandes compositores aqui, cujo valor literário passa despercebido ao ouvinte desavisado, se focado somente no canto, no tom, na melodia.

O meu compositor-poeta preferido é Chico Buarque, que, além de todo o seu talento musical, possui uma admirável destreza para o uso da palavra e é, verdadeiramente, um literato. Por isso, nesta oportunidade, escolhi falar de “Construção”.

Construção” é uma letra/um poema de protesto, se considerado o contexto histórico em que foi criado, nos anos em que o país estava sob o regime militar. Não é poesia só pelo “tom literário” mas, também, do ponto de vista estrutural. Uma letra riquíssima.

Estruturalmente, há duas características que fazem com que o ritmo e a musicalidade do poema sobreviva mesmo sem música. A primeira é que ele é todo escrito em versos alexandrinos. Você lembra o que são, exatamente, os versos alexandrinos? De um jeito mais simples, explico: são versos de 12 sílabas poéticas em que a 6ª e a 12ª sílabas são tônicas. Como em: “A/mou/da/que/la/VEZ/co/mo/se/fos/se/a/ÚL/tima…” Na verdade, são 12 sílabas com uma cisão na 6ª sílaba, o que ocorre com uma intenção: obriga-nos a uma pequena pausa na 6ª sílaba, assim aumenta a cadência e garante ritmo e musicalidade aos versos. Experimente ler em voz alta os versos da canção com a marcação forte das 6ª e 12ª sílabas de cada verso e você perceberá facilmente o quão rítmica é a letra.

Versos alexandrinos são de elaboração muito difícil e a música inteira é construída assim, o que evidencia a habilidade que Chico Buarque possui como compositor e o uso consciente que faz dos recursos de linguagem.

A segunda característica é o uso recorrente das proparoxítonas pelo compositor. Reparem: todos os versos alexandrinos terminam com uma palavra proparoxítona e a 12ª sílaba tônica é sempre a 1ª sílaba dessa palavra. Peguemos a primeira estrofe: “última/última/único/tímido”. Vejam as estrofes seguintes. Isso reforça a marcação cirúrgica da sílaba tônica e a estrutura rítmica da letra/poema.

São essas palavras proparoxítonas que, mesmo mantendo-se no fim dos versos, mudarão de posição nas estrofes, conforme a letra se desenvolve, e vão modificando significados e imagens ao serem associadas a diferentes substantivos e adjetivos. Através desse jogo, o narrador nos conta uma história.

A história é a de um operário da construção civil que se despede da família pela manhã, vai para o trabalho e, após o intervalo para o almoço, cai do alto da construção em que trabalhava e morre. A história é contada e recontada mais duas vezes. A primeira vez em que é narrada, as imagens criadas, embora poéticas, estão mais próximas de uma literalidade, são uma descrição fiel dos passos do operário, personagem central da letra.

Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido

Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima

Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música

E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão, atrapalhando o tráfego

Na segunda vez em que a história é contada, a troca dos adjetivos e substantivos no fim dos versos constroem metáforas e comparações que trazem à narrativa algo mágico e mais emoção à voz de quem narra o desfecho trágico que já sabemos.

Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado

Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego

Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo

E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público

Veja, por exemplo, a segunda estrofe dos recortes acima. Na primeira parte da música, o narrador diz que o operário sobe a construção como se fosse máquina, sugerindo a automatização de uma rotina que o desumaniza num gesto desmotivado relacionado ao trabalho. Na segunda parte, diz que o operário sobe a construção como se fosse sólido, chamando a atenção para a insegurança que experimentava no ambiente de trabalho. Como nem seu corpo nem o corpo da própria construção eram sólidos, cria-se um suspense para a narrativa do fato que vem a seguir: o homem não resistiria à queda. Na primeira parte da canção, o operário ergue quatro paredes sólidas, como, provavelmente, aconteceria na “vida real”; na segunda, quatro paredes mágicas, o que sugere diferentes ideias, todas ligadas à abstração. Com essa mudança de adjetivo, o ambiente que cerca o operário nos parece mais etéreo ou mais inseguro, e nós, que já sabemos que ele cairá, porque ouvimos a primeira parte da canção, sentimos aumentar a tensão do momento.

Aumentam, também, os contrastes emocionais. Observe, por exemplo, a terceira estrofe dos recortes. Na primeira parte, na hora do almoço, o operário descansa por um tempo, como se fosse seu dia de folga, sábado, alimenta-se como um príncipe e bebe e soluça como um náufrago. Imagens do relaxamento, da satisfação e da discreta preguiça depois do almoço. Na segunda parte, muda-se o tom do intervalo: o operário se senta como um príncipe (e não relaxado, espalhado como num sábado preguiçoso), bebe e soluça como máquina (com pressa, sem aproveitar o momento) e dança “como se fosse o próximo”. Bem, nós já sabemos que ele é “o próximo”, que se acidentaria, então, mais uma vez, o suspense aumenta até que esse momento chegue. Além disso, pode ser uma sugestão de que ele buscava aproveitar intensamente os últimos momentos da vida que vivia, mesmo que inconscientemente.

Na terceira vez em que a história é contada, os acontecimentos se condensam e o foco são as principais ações: amou a mulher, beijou-a ao despedir-se, ergueu paredes, sentou para descansar, caiu, morreu. Sem imagens intercaladas entre os acontecimentos. Numa estrofe de seis versos, ele descreve o que, nas duas primeiras vezes, fez em quatro estrofes. Nem por isso sua descrição concisa é menos emocionante – a história já fora ouvida duas vezes, o desfecho é conhecido e a ênfase nas ações torna o fim mais dramático.

Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado

Na gravação original de “Construção”, há  mais três estrofes após a última parte, formando um último bloco, portanto, de quatro estrofes. Entretanto, essas estrofes pertencem a “Deus lhe pague”, outra canção do compositor, que possui uma estrutura narrativa diferente. As diferenças se acentuam com um coro acompanhando o intérprete da canção e a mudança na métrica dos versos e na melodia. Associando-se essas estrofes às de “Construção”, constroem-se mais claramente as críticas sociais, ironizando-se o sentimento de gratidão. Somos gratos pela vida que nada nos oferece. Somos gratos pela vida que nos é imposta. Somos gratos pela morte que nos redime dessa vida em que subsistimos.

Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague

Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça e a desgraça que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair
Deus lhe pague

Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague

A valorização da estrutura formal e das escolhas racionais do compositor, apontando-as neste artigo, foi uma tentativa de estender a visão sobre a qualidade da música escolhida para análise.

Mas é claro que nossos gostos e escolhas artísticas passam, mais intensamente, pelo emocional. A narrativa de “Construção” é extremamente comovente. Uma crítica social contra o homem ser tratado como máquina, como coisa, através da descrição da rotina de uma vida automatizada de uma pessoa que, como qualquer um de nós, possui sonhos, risos, sentimentos, ilusões e amor. As imagens concretas e obscuras em oposição às leves e etéreas, mostram o duro movimento de remar contra uma maré social ou contra a injustiça da vida ou, mesmo, contra o destino final de todos, mesmo que, tendo ou não vivido, chegam ao dia de sua sempre inesperada morte. Nós todos. E o elemento mais dramático da letra está justamente na forma como a morte desse homem é tratada: um estorvo para os outros mais do que uma tragédia pessoal. O homem que se acidenta “atrapalha o tráfego”, “atrapalha o público”, “atrapalha o sábado”.

A fragilidade de sua carne, o imponderável destino que o atropela, os sonhos que possuía e acabam sem se terem realizado juntam-se à gratidão irônica dos versos finais (algo como “obrigado por nada”) e despertam em nós pena, empatia, medo e revolta. Afinal, somos todos como o pobre operário da narrativa: construímos paredes que julgamos sólidas mas, às vezes, são flácidas; amamos como máquina por não perceber que pode ser a última vez; queremos viver como se fosse sábado e não como se fôssemos o último. A música nos cala e nos emociona porque fala do destino comum a todo homem, fala do imponderável, fala do quanto nos sentimos socialmente massacrados mas, acima de tudo, fala da nossa delicada humanidade. E mais do que habilidade literária, o olhar sensível do compositor dessa história o diferencia e o efetiva entre os maiores compositores de nossa música de todos os tempos.

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, aqui no ArteCult, há texto novo da autora. Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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