Literatura é coisa só para eruditos, certo? Errado!

A Literatura é uma forma de arte presente na vida comum de qualquer homem e uma necessidade do espírito humano. É inerente à nossa raça a tendência de organizar pensamentos, fabular, usar parábolas para vender ideias, passar adiante histórias de antepassados através de epopeias ou coisas do

tipo. A relação que temos com a história do mundo ou com a história das religiões ou com a ciência passa pela relação com a Literatura ou, melhor, passa pela nossa necessidade de expressão literária.

Nem só Camões ou Nitzchie são referências de literatura. A produção textual que se cria nas bases de uma sociedade ou as manifestações folclóricas que se utilizam do texto são, igualmente, literatura. Incluam-se aí as lendas, os provérbios, os ditos populares, as rezas, os autos populares, entre outras coisas.

Na verdade, ainda que se possa resistir à ideia, é necessário entender que, mesmo a produção de menor valor artístico, digamos assim, cumpre o papel maior da Literatura, se o leitor puder utilizar-se dela para expressar sua paixão ou para significar o mundo a sua volta.

Qualquer pessoa, ao ler um poema, uma crônica, um livro ou um ensaio, alarga sua visão de mundo. Descobre mais elementos para identificar as emoções no que a cerca, para reconhecer situações da vida e para entender que sua angústia, sua dor ou sua alegria não a isolam no mundo mas, ao contrário, são o que a conectam a sua humanidade, porque já foram vividas e relatadas ou cantadas por alguém. A literatura é um espelho em que o homem se reconhece (ou até se estranha) e, nessa relação, a alma humana se acresce de experiência, de conhecimento e, por que não?, de sensibilidade, o que permite ao homem enriquecer suas relações e elaborar suas próprias ideias.

Mas, para isso, não é preciso ler, necessariamente, um “pensador profundo”, não é preciso erudição ou iniciação em filosofia ou teoria literária. Um bom texto escrito, uma boa crônica de jornal e, ouso dizer, até um “post” bem escrito em rede social, em que se pretenda refletir sobre questões existenciais ou sociais contemporâneas, são um viés de contato com o universo literário e cumprem o papel de colocar o homem diante da reflexão sobre o contexto em que vive. Daí para gostar de ler e adquirir o hábito e, na sequência, caminhar para obras literárias mais profundas e/ou consagradas é um passo apenas.

Da mesma forma, a literatura popular, como, por exemplo, a de cordel, é um genuíno manifesto literário, baseada na linguagem oral e pouco erudita, e nem por isso menos expressiva no que se refere ao registro do contexto social em que é produzida ou na função de elaboração dos sentimentos humanos.

E quando se fala da oralidade dessas peças, é inevitável pensar, ainda, que a função principal da literatura existe até mesmo antes de as ideias virarem texto. Na verdade, é onde se tocam os pontos de todo e qualquer manifesto artístico: a explicação profunda das coisas – físicas e abstratas – que há no mundo e no homem. Antes que se escolha o canal para que ela se manifeste: texto (literatura), pintura ou música, entre outros.

Assim, a relação do homem com a literatura deve sempre ser incentivada desde bem cedo. Antes da escola, em casa. Ler e contar histórias ajudam as crianças a aprenderem a expressar-se, a nomear suas emoções, incentivam o mergulho na criatividade e na imaginação. É uma ferramenta poderosa para ensinar as crianças a verbalizarem os sentimentos. Nos anos de escola, o livro deveria ser apresentado como elemento lúdico e, ainda nas séries mais avançadas, como portais de conhecimento e de lições sobre a nossa humanidade, mais do que como peças de erudição e cultura. Criar no aluno o gosto pelo hábito da leitura é entregar a ele uma chave de decifração eficiente para o entendimento e percepção total de todos os discursos que ele testemunhar vida afora, sejam eles políticos, religiosos ou até mesmo de amor.

A cultura e a erudição são o bônus especial, a cereja do bolo. A sofisticação do pensamento e da argumentação seguem de mãos dadas com eles. Mas ninguém valoriza a estética de Camões se não percorrer um caminho de formação que permita ao leitor reconhecer o diferencial, a singularidade dela.

Por isso acredito que o leitor se faz num processo de vida. Que, guardadas as devidas proporções, um poema de Cordel, uma fábula de Esopo ou um conto dos Irmãos Grimm são elementos ricos de discussão, asaim como um tratado de filosofia, se adaptados a seu público e a sua função, se mergulhados estivermos no que expressa a obra em si.

Por outro lado, também acredito que todo mundo tem que ter direito à melhor literatura que houver. Que negar acesso ou dar um acesso superficial à obra dos grandes autores é cercear o olhar humano. É preciso criarem-se condições na Educação para que se formem leitores excelentes e capazes de decifrar as grandes obras e, com isso, o mundo. É preciso, diante da dificuldade de leitura de uma obra (seja por fatores educacionais ou de maturidade) aproximar o livro do leitor, mostrar que atrás de uma construção sintática mais complexa existe uma verdade vulgar, inerente ao homem comum. Que ele pode ou não se identificar com a forma como um escritor escolheu se expressar, pode gostar dele ou não, e, independentemente disso, identificar-se ou não com a essência do que estiver dito ali.

Há uma cena clássica do filme “Sociedade dos Poetas Mortos”, em que o professor interpretado por Robin Willians diz aos alunos que não escrevemos poemas porque é bonitinho; que os escrevemos porque somos da raça humana e a raça humana está cheia de paixão. É uma cena linda, em que ele tenta, dentro de uma escola tradicional que forma grandes homens para profissões consideradas, na época, mais relevantes no mundo, fazer os alunos entenderem exatamente o conceito que falamos aqui: a Literatura, de forma mais específica (mas a arte em geral), é o elemento de que o homem se utiliza para relacionar-se com o mundo a sua volta, é o que lhe traz a compreensão, a reflexão, é o que lhe põe em contato com seus sentimentos mais profundos. E por mais que vivamos uma vida funcional, que sobrevivamos às exigências materiais e sociais, no fim das contas o que nos faz feliz e o que nos traz completude é a forma como lidamos bem com as nossas paixões.

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, no ArteCult, há crônica nova da autora, que integra o projeto AC VERSO & PROSA junto de Tanussi Cardoso (poemas) e César Manzolillo (contos). Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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