Quando olhei pro calendário, vi que minhas férias do ano passado, marcadas pra outubro, estavam chegando – sim, tô falando do ano passado! – e eu ainda não havia definido qual seria o destino. Mas de uma coisa eu tinha certeza, já naquele momento: queria aproveitá-la pra encontrar um tema que fosse instigante e que desse origem a um grande artigo aqui pro ARTECULT.
Foi aí que, depois de alguns dias de discussões acaloradas, entre uma ideia e outra, me deparei com a possibilidade de percorrer uma parte da ESTRADA REAL, maior rota turística do Brasil, que corta os estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro com seus mais de 1630 km e que, antigamente, era utilizado para o escoamento de todo o ouro e diamantes retirado das terras mineiras até as cidades de Paraty e Rio de Janeiro. Além de todo o contexto histórico e cultural, é óbvio que me chamou a atenção a oportunidade de mergulhar na culinária dos tropeiros.
Bingo! Havia encontrado o destino perfeito para as minhas férias!
O primeiro passo foi fazer uma ampla pesquisa sobre as origens da ESTRADA REAL. E, durante esse trabalho de investigação, descobri muita coisa interessante! Pra começar, transcrevo um texto do pesquisador de rotas históricas Márcio Santos, autor do livro Estradas Reais: introdução ao estudo dos caminhos do ouro e do diamante no Brasil (Belo Horizonte: Editora Estrada Real, 2001):
“Por terem constituído, durante longo tempo, as únicas vias autorizadas de acesso à região das reservas auríferas e diamantíferas da capitania das Minas Gerais, os caminhos reais adquiriram, já a partir da sua abertura, natureza oficial. A circulação de pessoas, mercadorias, ouro e diamante era obrigatoriamente feita por eles, constituindo crime de lesa-majestade a abertura de novos caminhos. O interesse fiscal, base da política metropolitana para a região mineradora da colônia, prevalecia sobre qualquer outro: cumpria, antes de tudo, ter as rotas de comunicação com as minas devidamente controladas e fiscalizadas, para que nelas se pudesse extrair uma massa cada vez maior de tributos para o tesouro real. O nome Estrada Real passou a aludir, assim, àquelas vias que, pela sua antiguidade, importância e natureza oficial, eram propriedade da Coroa metropolitana. Durante todo o século XVIII, e também em parte do XIX, quando a era mineradora já se fora e os caminhos se tornaram livres e empobrecidos, as estradas reais foram os troncos viários principais do centro-sul do território colonial.
Ao longo dos caminhos reais espalharam-se os antigos registros, postos fiscais de controle, alguns dos quais ainda podem ser apreciados na atualidade. Eram de diversos tipos: registros do ouro, que fiscalizavam o transporte do metal e cobravam o quinto; registros de entradas, que cobravam pelo tráfego de pessoas, mercadorias e animais; registros da Demarcação Diamantina, responsáveis pelo severo policiamento do contrabando e pela cobrança dos direitos de entrada na zona diamantífera; e contagens, que tributavam o trânsito de animais. Os prédios dos registros eram instalados em locais estratégicos dos caminhos: passagens entre serras, desfiladeiros, margens de cursos de água. No seu interior se colocava o pessoal empregado: um administrador, um contador, um fiel e dois ou quatro soldados. Um portão com cadeado fechava a estrada.
As estradas reais foram, ainda, os eixos principais do intenso processo de urbanização do centro-sul brasileiro. Ao longo do seu leito ou nas suas margens se distribuíram as centenas de arraiais, povoados e vilas em que se organizou a massa populacional envolvida com a economia da mineração e com as economias a ela associadas. O povoado à beira do caminho, com o cruzeiro, a capela, o pelourinho, o rancho de tropas, a venda, a oficina e as casas de pau-a-pique simbolizou, durante longo tempo, o processo de nucleação urbana do centro-sul da colônia. Povoados e vilas típicos foram visitados e descritos pelos viajantes europeus do século XIX, que nos deixaram páginas e páginas de notas de viagem sobre as paisagens e os núcleos urbanos que encontraram nas suas jornadas pelos caminhos coloniais brasileiros.
No auge da mineração, esses caminhos se viram percorridos por imigrantes paulistas, baianos, pernambucanos e europeus; por tropeiros do sul e de São Paulo; por boiadeiros do rio São Francisco e do rio das Velhas; por sertanistas da Bahia e das vilas paulistas; por escravos negros e índios; por mascates, administradores reais, homens do fisco, soldados mercenários e milícias oficiais.
A expansão originária dos primeiros grandes caminhos do centro-sul do território colonial conformou um dos mais significativos movimentos de apropriação do interior brasileiro e de sua integração com a faixa litorânea. Ampliando a base territorial da América portuguesa, as vias hoje reunidas sob o nome de Estrada Real foram, assim, fundamentais na história do povoamento e da colonização de vastas regiões do território brasileiro, tornando-se verdadeiros eixos histórico-culturais de construção de parte da nossa história.”
O Projeto Estrada Real foi formulado em 2001 pelo INSTITUTO ESTRADA REAL (@institutoestradareal), sociedade civil, sem fins lucrativos, criada em 1999 pela FIEMG – Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais com a finalidade de valorizar o patrimônio histórico-cultural, estimular o turismo, a preservação e revitalização dos entornos das antigas Estradas Reais e conta com uma equipe multidisciplinar, que tornou o destino reconhecido no Brasil e no mundo.
Segundo o site oficial https://institutoestradareal.com.br/ são quatro os caminhos que integram a ESTRADA REAL:
CAMINHO DOS DIAMANTES: o caminho tinha a intenção de conectar a sede da Capitania, Ouro Preto, à principal cidade de exploração de diamantes, Diamantina
CAMINHO VELHO: também chamado de Caminho d Ouro, foi o primeiro trajeto determinado pela Coroa Portuguesa e liga Ouro Preto a Paraty.
CAMINHO NOVO: criado para servir como um caminho mais seguro ao porto do Rio de Janeiro, principalmente porque as cargas estavam sujeitas a ataques piratas na rota marítima entre Paraty e Rio.
CAMINHO DO SABARABUÇU: Distrito de Ouro Preto, o lugar é cercado por esplêndidas paisagens de montanhas e lendas que permeiam o imaginário popular.
De posse de todas essas informações, resolvi estruturar esse artigo em três partes. Uma primeira, introdutória, trazendo toda a preparação para a viagem, o planejamento e as informações necessárias pra quem quiser, algum dia, se aventurar também por esta rota rica em cultura; e outras duas partes, mais detalhada para cada um dos caminhos – VELHO e NOVO – que fiz nessa viagem.
Socorrendo-me do meio de informação oficial, descobri acerca da existência do Passaporte ESTRADA REAL, em suas duas modalidades, físico e virtual. Assim como no famoso Caminho de Santiago de Compostela, ele serve para ser o registro de sua jornada pela rota, permitindo que a experiência seja materializada em uma recordação muito significativa.
De início, baixei o Aplicativo Estrada Real, que é gratuito e individual, e fiz meu cadastro. Já para o Passaporte Físico, entrei no site, fiz o login e utilizei o mesmo cadastro que já havia feito – sim, esse cadastro é único e pode ser preenchido tanto no site ou pelo aplicativo. Um e-mail de confirmação com número é encaminhado para a caixa postal e é esse código que deve ser apresentado nos pontos de retirada de passaporte, juntamente com 1 kg de alimento não perecível (exceto sal, fubá, açúcar e farinha), que será doado para alguma instituição local.
E para que serve o passaporte? Ao longo de toda a ESTRADA REAL é possível obter carimbos de diversas cidades, que são a prova de que você passou por elas e, ao fim da jornada, é possível conseguir um certificado para cada um dos quatro Caminhos. Durante o percurso, existem pontos de check-in do Passaporte Virtual e diversos pontos de carimbo para o Passaporte Físico. E mais: àqueles que percorrerem os quatro Caminhos serão contemplados com o Certificado Especial, o reconhecimento máxima da ESTRADA REAL. Nem preciso dizer qual o destino de minhas próximas férias, né?
A ideia seria fazer o trajeto de ida pelo Caminho Novo e o de volta pelo Caminho Velho. Claro que minha preocupação inicial seria traçar um percurso predominantemente pelo asfalto, fugindo o máximo possível das estradas de terra, já que meu carro não é 4×4 – claro que, se de moto, bike, a pé ou a cavalo, o ideal seria fazer a Estrada pelas vias originais! Pelas minhas estimativas, via Google Maps, percorreria em torno de 490km na ida pelo Caminho Novo e mais 640km, na volta pelo Caminho Velho.
Definido o roteiro, era hora de me aprofundar no assunto que mais me interessava: a gastronomia da ESTRADA REAL, que possui diferentes aspectos físicos, mas inúmeras semelhanças históricas e culturais. Pelo mapa, podemos aferir que a maior parte dela se encontra no Estado de Minas Gerais e sabemos que a comida mineira é resultado de um pouco da gastronomia portuguesa, aliado às receitas africanas e uma pitada da culinária indígena. Como vivi até meus dezoito anos em uma cidade mineira – e que faz parte do roteiro – muita coisa eu já havia experimentado.
Tratei de fazer uma listinha básica de desejos. Como tinha definido os pontos de coleta de carimbo pelos quais passaria, fui encaixando todos os pratos que iria (tentar) provar. Estamos, aqui, falando de uma culinária tropeira, simples e prática, mas com bastante “sustança”, pois para comer no caminho, eles levavam basicamente arroz, feijão, carne-seca, toucinho, farinha de milho e de mandioca, sal, alho, açúcar e café.
Na lista estavam pratos como o frango com quiabo (presente em praticamente todas as cidade mineiras!), tutu a mineira, bambá de couve, feijão tropeiro, ora-pro-nobis, frango ao molho pardo, leitão a pururuca, vaca atolada, entre tantas outras iguarias. Peguei cada cidade do roteiro, busquei o que ela oferecia como típico do seu contexto, e inseri nos planos de minha jornada gastronômica.
Por exemplo: Glaura, distrito de Ouro Preto, e Carrancas são conhecidos por sua carne de lata, assim como Lagoa Dourada é pelo rocambole. Tem o cubu de Congonhas, o queijo Catauá de Cel. Xavier Chaves, a cachaça de Paraty, os queijos de Cruzília e Itanhandu. E por aí vai…
Já tinha tudo que precisava. Uma última informação: sabia que encontraria diversos marcos da ESTRADA REAL pelo caminho e foi interessante saber que, além de indicar que se está no caminho certo, a ponta superior dele não indica para onde se deve ir. Ele geralmente será encontrado em bifurcações e, se o marco estiver à esquerda da via, é pela esquerda que se deve seguir.
Com tudo planilhado, aplicativo devidamente instalado, partimos rumo à Petrópolis, para a retirada do passaporte no Centro de Informações Turísticas da Praça da Liberdade e, ali, já pegamos o primeiro carimbo.
Aqui vale deixar uma dica, por experiência pessoal: não se limite apenas ao passaporte físico. Ter o passaporte virtual torna a viagem ainda mais legal, na medida em que ela vira, praticamente, uma “caça ao tesouro”! Brincadeira à parte, o passaporte virtual possui muito mais pontos de carimbo – afinal, cada caminho possui uma grande quantidade de marcos – e deve-se estar a, pelo menos, 10 km do ponto de check-in. E a gente, sem perceber, entra na brincadeira, e quer, a qualquer custo, preencher todo ele…
E a aventura teve início…
Porém, este é um artigo sobre gastronomia e não sobre viagem, né? E esse é apenas um artigo introdutório, já que, darei mais detalhes nos próximos dois artigos, sobre o CAMINHO NOVO e o CAMINHO VELHO, com as cidades visitadas e as iguarias características de cada uma delas.
Mas, aqui, nesse primeiro momento, acho que é interessante contextualizar a culinária mineira, consolidada há mais de 300 anos, na época do ciclo do ouro. É por conta da busca desse ouro que muitas pessoas de diversas origens – bandeirantes paulistas, tropeiros gaúchos, trabalhadores braçais do norte e nordeste, nobres vindos de Portugal, pessoas escravizadas e líderes da Coroa – foram atraídas para Minas Gerais e, por certo, esse caldeirão cultural influenciou e delineou a identidade da gastronomia mineira. E, para quem não sabia, esses sabores tão peculiares ganharam uma data representativa em 2012, quando o Governo do Estado de Minas Gerais definiu que em todo dia 5 de julho, dia do nascimento de Eduardo Frieiro, autor do primeiro livro de gastronomia dedicado aos sabores de Minas – “Feijão, angu e couve – Ensaio sobre a comida dos mineiros” (1966) – seria comemorado o Dia da Gastronomia Mineira.
Quando estava passando por Matias Barbosa para pegar o carimbo, resolvi parar para almoçar. E, pra minha sorte, lá tinha uma variedade de comidas típicas mineiras que serviriam pra ilustrar meu artigo. Montei um pratinho com um pouquinho de cada coisa e, acho! – ficou bastante representativo…
No prato tinha: tutu à mineira (feito à base de feijão e farinha de mandioca), feijão tropeiro (tendo como base o feijão, resulta da junção de torresmo, linguiça, farinha, cebola e alho), aipim frito, linguicinha mineira, couve refogada, bolinho de arroz, angu e frango com quiabo (esse ficou escondidinho lá embaixo…).
É interessante notar a contribuição de culturas específicas em alguns pratos e ingredientes. Os indígenas, com o pirão, farofa, paçoca, mandioca, milho, cuscuz, canjica, e pamonha; os portugueses, que trouxeram doces, bolos e preparos diferentes de ovo (gemada, ovo frito, ovo cozido); e os povos escravizados e sertanejos, com melado rapadura e farinha.
Mais à frente, já em Ouro Branco/GM, parei no Confessionário Bar (@confessionariobaroficial) e experimentei o Pastel de Angu, herança dos povos escravizados, que faziam uma massinha de água e fubá, recheada com guisado. E olha, isso é só uma amostra do que ainda estava por vir…
Pra finalizar, deixo aqui o convite especial feito pelo INSTITUTO ESTRADA REAL em sua página oficial:
Vamos conhecer, em detalhes, a partir do próximo artigo, o CAMINHO NOVO e o CAMINHO VELHO, através das cidades em que passei e das delicias que experimentei. Vamos passar por todas elas e ver o que cada uma tem para oferecer. Quem sabe, isso anime vocês a fazer uma aventura de vez em quando, né? Vale muito a pena…
E aí, quem vem comigo?
Parabéns pela matéria e pela aventura, Del!