De Jasão à Medéia, passando por Midas, Édipo tornou-se Narciso – Parte III

 

Não há “nós” sem reconhecermos o “outro”.  O grande passo se dá pela descobertade que estamos no mesmo barco. Ou vivemos juntos ou morremos juntos. (Guilhermo Del Toro, cineasta mexicano)

Catarse é uma palavra originada do grego antigo que significa “limpeza” e “purificação pessoal”, é usada para designar o estado de libertação da alma (mente, coração, corpo) que sentimos quando, a despeito das adversidades com as quais nos deparamos na vida, conseguimos superar traumas, medos e opressões ou perturbações psíquicas. Catártico é todo fenômeno, natural ou social, que nos leva a sair de nosso eventual e momentâneo estado de letargia e mesmo de catatonismo e nos leva a fazer acontecer de modo diferente, agradável e proveitoso. Retomando, pois, a segunda parte do artigo, vemos um exemplo de falta de ponderação e de bom senso, além de pouca empatia pela vida e sua diversidade e dos males que tal postura pode causar.

A terceira história, aqui apresentada, é uma das mais famosas da mitologia grega e também inspirou outra das ideias de Freud, uma das mais conhecidas, por sinal, ideias que acabaram baseando os primórdios da Psicanálise.

Narciso

Narciso era filho do Deus Rio Céfiso e da Ninfa Liríope (ninfas eram fadas sem as asas tradicionais com as quais as representamos, normalmente; eram divindades femininas que habitavam elementos da Natureza, como lagos, florestas, rios, montanhas etc. e que simbolizavam a fertilidade); era, portanto, um semi-deus. Desde muito jovem, ele fora um belo e charmoso mancebo (rapaz). No momento de seu nascimento, o Oráculo de Tirésias profetizou que ele teria vida longa, caso não contemplasse a própria beleza. Todos os espelhos lhe foram negados, mas apesar dos cuidados, Narciso cresceu arrogante e orgulhoso, dispensando todos, mulheres e homens, que lhe faziam a corte; não achava ninguém digno de seu amor. Muitas ninfas, também o assediavam, mas nem elas eram, para Narciso, dignas de com ele se casar e/ou mesmo apenas copular. Um dia, uma delas, apaixonada e revoltada com a recusa, lançou em Narciso, sua maldição: a de que ele iria se apaixonar por alguém que jamais poderia ter. Nêmesis, deusa do equilíbrio, mas também da vingança, com pena de suas amigas ninfas e contrariada com Narciso, atendeu às súplicas desta ninfa em particular.

Um dia, ao ver seu reflexo em um lago, Narciso apaixonou-se pela própria imagem, mostrando-se a personificação da vaidade e do mal que ela faz, quando excessiva e descontrolada – eis a mensagem que a história nos deixa. Sem poder ter a si mesmo, por óbvio, o único que considerava digno dele mesmo, Narciso permaneceu indefinidamente à beira do rio e definhou, admirando a própria imagem. Narciso teria nascido na cidade grega da Beócia – palco, também, de uma trama (que não será descrita aqui), em que os habitantes foram enganados por Ino, filha do Rei Cadmo e Harmonia e talvez por esta razão que, até hoje, a palavra “beócio” é sinônimo de ingênuo, tolo ou mesmo otário. Há quem atribuía essa ligação semântica, igualmente, à história de Narciso que, por essa lógica, teria se auto-enganado. Enfim…

Ninfas

O fato é que a história secular de um ser auto-referenciado e que só vê a si mesmo é a mais pura essência de muitos de nós e de nossas sociedades – as muitas “selfies” que vemos hoje não me deixam mentir (quem se interessar pelo tema, pode buscar no Portal Acadêmico da Unesp, artigo que publiquei com o título de “Selfiedade”). Este tipo de pessoa está aí, ao seu lado agora, ou na esquina, tomando uma cerveja, ou na gerência da sua empresa ou na presidência do seu país… Esse tipo de atitude é altamente nefasta porque ela faz com que não percebamos o outro como um ser que também é portador de direitos básicos, como ter a possibilidade de viver com dignidade (se alimentar, ter moradia, ter escola, amar, ser respeitado em seu direito de ser o que é ou que escolheu ser…). Além disso, o narcisismo é altamente prejudicial para a formação da auto-identidade de quem deste mal padece, fazendo-o não se perceber como um ser social e sociável, transformando-o em um ser auto-centrado e que odeia a diversidade da imagem que não reflete a sua e/ou da voz que não reproduz aquilo que sente ou pensa.

Mitologias tupiniquis

Como as três histórias mitológicas da Grécia Antiga, narradas nas três primeiras partes deste artigo, nos ajudam a entender o que estamos vivendo hoje, no mundo e no Brasil?

É possível que você esteja se fazendo, além de outros, os seguintes questionamentos abaixo, para os quais exponho umas tantas reflexões minhas, dividindo-as com você(s) leitor(es), com o objetivo de tentar alinhar, senão respostas definitivas, seria arrogância de minha parte, ao menos alguns rudimentos de respostas para cada uma das indagações a seguir. Ligar os pontos, reais, no papel, ou fenomenológicos e existenciais, é sempre a melhor forma para vermos a figura oculta e, assim, compreendermos o que está por detrás das aparências do que nos é mostrado por quem só lucra com a ignorância e o despreparo, além do egoísmo alheio, bem como com sua ganância em mais ter, do que ser, para usar um jargão popular.

Por que a escolha da mitologia grega antiga?

Várias são as razões, como o motivo mais corriqueiro e que leva muitos pesquisadores a realizar seus estudos, ou seja, porque gosto muito de mitologia grega.  São histórias belíssimas, embora trágicas e, não raro, exageradas. Também me motivou o fato de que as narrativas escolhidas (como outras) expõem, ludicamente, muito do que somos hoje, como sociedades constituídas neste século XXI. A mitologia grega antiga é, ao menos na cultura ocidental, em que nascemos e vivemos no Brasil, não apenas a primeira tentativa de explicação cosmogênica, mas a primeira tentativa de nos explicar, para nós mesmos, o porquê de sermos o que somos, como somos e de apontar, de algum modo, para onde podemos ir, ao menos do ponto de vista existencial e social.

Onde essas histórias se cruzam, se é que o fazem?

A narrativa da mitologia helênica é um portento; ela nos faz mergulhar no mais profundo “eu coletivo”, consciente e inconsciente, material e imaterial, concreto e simbólico e sem essa imersão, a compreensão do mundo, ao menos do nosso mundo ocidental, tornar-se-ia capenga e estaríamos relegados ao mais profundo obscurantismo (e não estamos?), como se ainda estivéssemos presos na caverna de Platão, vendo as sombras dos recônditos obscuros de nossas almas (psiquês) que nos cegam, se dela não escaparmos. Cada uma das histórias resumidas nas partes anteriores deste artigo compõe um mosaico de idiossincrasias humanas, subjetiva e coletivamente falando. O cruzamento ora buscado acontece, pois, na medida em que as histórias apontam para maior compreensão de nossas ações e sobre formas melhores de como podemos lidar com elas e com suas possíveis consequências.

Como essas histórias mitológicas nos ajudam a entender o “Trumpinistão” mundial, e seu caso muito particular, o “Bolsonistão”, ou seja, o nosso país atual?

Não explicam, na integralidade, por si mesmas, a complexidade total do mundo e do Brasil, mas explicam parte do que vivemos, hoje. As histórias narradas falam menos sobre fatos supostamente acontecidos; elas narram sagas fictícias, porém, que dizem muito sobre como somos seres falhos. Donald Trump e sua cópia mal feita, piorada e subserviente, Jair Bolsonaro (dentre outros reacionários e autoritários, mundo afora), na verdade, expuseram características de muitos norte americanos, brasileiros e uns tantos outros que estavam, até então, restritos aos guetos imundos das “deep webs” da vida, mas que emergiram com força. Esses líderes toscos e cruéis destamparam os esgotos da alma humana e deles veio com intensidade a tsunami que nos afoga até hoje – mas que, tudo correndo bem, começará a ter fim nas eleições de outubro. O que houve com a ascensão do nazi-fascismo pré medieval, terraplanista, corrupto e intolerante, de 2016 e 2018 para cá, do ponto de vista das percepções subjetivas e cidadãs sobre o país que desejamos e que achávamos que estávamos construindo, aponta para um mundo e para um país que precisamos, com urgência, mais do que reformar, reconstruir. E não estamos aqui a dizer que apenas, no plano político, as esquerdas têm o caminho da salvação, não acreditamos nisso. Todas as boas e honestas pessoas, de esquerda, de centro e de direita, devem se dar as mãos, metaforicamente falando, defenestrar o nazi-fascismo há pouco aludido, mandá-lo de volta para os esgotos humanos, antes referidos, de onde nunca deveria ter saído e por essas mesmas mãos às obras para forjar um novo mundo e um novo Brasil.

Na quarta e última parte deste artigo, vamos aprofundar um pouco mais o contexto brasileiro atual, ligando-o ao que até aqui vimos, de modo mais direto, das narrativas mitológicas dos gregos de outrora.

 

Carlos Fernando Galvão,
Geógrafo, Doutor em Ciências Sociais e Pós Doutor em Geografia Humana
cfgalvao@terra.com.br

 

 

 

 

 

Fontes:

BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia – histórias de deuses e heróis. 34.ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006

FERRY, Luc. A sabedoria dos mitos gregos. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2009

 

 

 

Author

Carlos Fernando Galvão é carioca, Bacharel e Licenciado em Geografia (UFF), Especialista em Gestão Escolar (UFJF), Mestre em Ciência da Informação (UFRJ/CNPq), Doutor em Ciências Sociais (UERJ) e Pós Doutor em Geografia Humana (UFF). Autor de mais de 120 artigos, entre textos científicos e jornalísticos, tendo escrito para periódicos como O Globo, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo e Le Monde Diplomatique Brasil (atual colaboração), também foi colaborador do Portal Acadêmico da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) entre 2015 e 2018. Além deste, o autor publicou outros 9 livros, textos acadêmicos e literários.

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