CONTO DE QUINTA: Vivo emoções em seu lugar ou tributo a Ariano

Ariano Suassuna. Foto: Reprodução.

VIVO EMOÇÕES EM SEU LUGAR OU TRIBUTO A ARIANO

 

Doralice ganhava a vida de um modo estranho. Pelo menos eu nunca tinha ouvido falar que alguém pudesse tirar o próprio sustento por meio de uma atividade como aquela. Até que vi numa revista a reportagem de título chamativo: “Vivo emoções em seu lugar”. Ela se intitulava artista performática, morava em Recife e garantia poder realizar desejos – sonhos também, por que não? – de moradores de outras cidades brasileiras e até estrangeiras, coisas como visitar um certo local, fazer um determinado programa, encontrar alguém  ou tudo isso junto se a vontade do cliente assim determinasse.

Após o estranhamento inicial, percebi que os serviços daquela mulher de comportamento inusitado me seriam bastante úteis. Na ocasião, eu morava em Teresópolis, cidade serrana do Rio de Janeiro. Dias antes, havia assistido a um festival de teatro organizado pela prefeitura num clube tradicional do município. O evento era dedicado à obra de Ariano Suassuna, autor nordestino que, até então, eu desconhecia. Três filhos pequenos, viúva recente, professora em duas escolas. Não tinha tempo para bobagens como teatro. Levada por uma amiga, acabei assistindo a obras-primas como Auto da compadecida, O santo e a porca, A farsa da boa preguiça e Torturas de um coração, peças de enredos críticos e bem urdidos, habitadas por personagens simples, representantes perfeitos de parcela significativa do povo brasileiro.

Na semana seguinte, lá estava eu, diante do computador da escola, buscando informações sobre Ariano e sua obra. Quanto mais eu lia, mais me vinha a vontade de encontrá-lo e de conversar com ele. Gostaria de conseguir lhe dizer algo a respeito do impacto que seus textos me causaram. Doralice poderia fazer isso por mim. Claro… A atriz da minha cena, a intérprete de mim mesma. Quem sabe durante um passeio de barco pelo Rio Capiberibe. O cenário deveria estar à altura do acontecimento. O rio seria perfeito. Sempre ouvi dizer que Recife é uma cidade encantadora. O texto também teria de ser caprichado. Um texto dirigido a um escritor deve ser mesmo especial. Não poderia me descuidar da iluminação. Luz natural… O pôr do sol, o luar talvez. Figurino de gala também seria imprescindível. Eu e Doralice acertamos todos os detalhes. Ela comprou minha ideia de cara. Senti que se empenharia em realizá-la da melhor maneira possível, exatamente como da vez em que, a pedido de um ardoroso torcedor do Grêmio, teve de depositar um buquê de rosas brancas no gramado do Estádio dos Aflitos. Era um agradecimento emocionado pela dramática vitória do time gaúcho sobre o Náutico durante aquela partida histórica de 2005, a famosa Batalha dos Aflitos.

O encontro aconteceu e foi registrado. Não houve Capiberibe, pôr do sol nem luz do luar. Num café do Recife Antigo, Doralice e Ariano se reuniram. Tudo sucedeu de forma muito mais modesta do que eu havia imaginado. Ariano é assim mesmo, desligado de formalidades. Hoje, recebi pelo correio a gravação em DVD do evento. As crianças dormem. O tique-taque do relógio de pêndulo impede que o silêncio na casa seja completo. Sozinha na sala, ligo a televisão e me transporto. O Recife é logo ali… E é mesmo lindo.

 

 

CÉSAR MANZOLILLO

 

 

 

 

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Author

Carioca, licenciado em Letras (Português – Literaturas) pela UFRJ, mestre e doutor em Língua Portuguesa pela mesma instituição, com pós-doutorado em Língua Portuguesa pela USP. Participante de 32 coletâneas literárias. Autor do livro de contos "A angústia e outros presságios funestos" (Prêmio Wander Piroli, UBE-RJ). Professor de oficinas de Escrita Criativa. Revisor de textos. Toda quinta-feira, no ArteCult, publica um conto em sua coluna "CONTO DE QUINTA", que integra o projeto "AC VERSO & PROSA" junto com Ana Lúcia Gosling (crônicas) e Tanussi Cardoso (poemas).

4 comments

  • Ariano deve ser sempre lembrado. O Recife, por sua vez, tem encantos que deixam boas memórias nos turistas. O que me deixou triste no conto foi ter me lembrado do fatídico dia da batalha dos Aflitos, em que meu glorioso Náutico perdeu de forma vergonhosa para o Grêmio. Vida que segue!

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