CONTO DE QUINTA: Vende-se

Foto: Simon Plestenjak

 

VENDE-SE

 

Cruzei o portão e logo avistei uma rolinha morta. A grama alta e malcuidada competia com o mato. Do lado de fora da casa, uma pintura pálida, descascada e algumas pichações que protestavam contra o governo anterior. Tive vontade de chamar por minha mãe. Quase consigo vê-la em pé diante da porta, postura altiva, robe de seda esvoaçante, cabelos compridos e levemente desalinhados, rosto maquiado… Depois de sua morte, era a primeira vez que eu retornava. Um silêncio intimidador que não combinava com a atmosfera da casa da minha infância e adolescência. Às vezes, um cachorro da vizinhança injetava um pouco de vida ao redor, assim como pássaros escondidos na folhagem das árvores do entorno.

No quartinho escuro, o cheiro era muito forte. O galinheiro ficava ao lado, um ambiente que eu frequentava bastante. Era o encarregado de cuidar dos animais. Fazia de tudo e acabei estabelecendo com eles um relacionamento amistoso. Em algumas ocasiões, podíamos contar com caseiros e empregadas, o que, com o passar do tempo, foi ficando cada vez mais raro. Os bichos me esperavam e sentiam minha falta quando eu ficava um tempo maior sem aparecer. Galinhas e coelhos. Patos e marrecos no lago próximo à mangueira. Comecei ajudando meu pai. Você tem sorte, ele dizia, se criássemos porcos e cabritos, o trabalho seria muito mais pesado. Um dia ele nos deixou. Sem aviso. Minha mãe fechou-se no quarto e quase morreu. Tia Berta então veio ficar com a gente. Cuidava dela e de mim, mas não se aproximava da criação. Agora eu era o único responsável. Até que ela também foi embora. Na época, vovó ainda era viva e nos visitava de vez em quando. Minha mãe passou a me trancar no quartinho sempre que recebia algum convidado. Homens, em sua maioria. Eu os via de relance, pelas frestas, descendo de carros elegantes. Dentro do quarto ao lado do galinheiro, penumbra. A lâmpada pendurada no teto queimava e demorava a ser substituída. A janela de madeira velha estava emperrada, era praticamente impossível abri-la. Na época, eu não conseguia. Cogumelos nasciam nas partes podres, devoradas por cupins.

O doutor Frederico chegou de táxi. Desceu do carro e começou a bater palmas e a chamar meu nome diante do portão. Fui ao seu encontro. Ainda no jardim, passou a me falar das propostas que havia recebido pela casa. Documentos pendentes e providências à espera de resolução. Burocracia enfadonha, enfim. Você não assinou os papéis que pedi? Estamos perdendo tempo. Talvez tenhamos de reduzir um pouco o preço, as pessoas se interessam mas não têm dinheiro, são tempos de crise. Você sabe, Felipe, o local se desvalorizou depois que o restaurante e o posto de combustíveis aqui da rua deixaram de funcionar. O sistema de transportes também não é dos melhores, sejamos realistas, acho que o metrô nunca vai circular nas redondezas. Sem dúvida, essa relativa proximidade com o mar continua sendo um atrativo. Como você é o único dono, acho que…

 

 

CÉSAR MANZOLILLO

 

 

 

 

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Author

Carioca, licenciado em Letras (Português – Literaturas) pela UFRJ, mestre e doutor em Língua Portuguesa pela mesma instituição, com pós-doutorado em Língua Portuguesa pela USP. Participante de 32 coletâneas literárias. Autor do livro de contos "A angústia e outros presságios funestos" (Prêmio Wander Piroli, UBE-RJ). Professor de oficinas de Escrita Criativa. Revisor de textos. Toda quinta-feira, no ArteCult, publica um conto em sua coluna "CONTO DE QUINTA", que integra o projeto "AC VERSO & PROSA" junto com Ana Lúcia Gosling (crônicas) e Tanussi Cardoso (poemas).

One comment

  • Onde posso ler o final ? esse conto narra a vida é emocionante, principalmente quando nos vemos num ambiente com algumas semelhança.
    Obrigada gosto muito dos seus escritos

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