CONTO DE QUINTA: Ribalta

com César Manzolillo

 

 

RIBALTA

 

Eram 5 horas da tarde quando, cansados e felizes, chegamos em casa depois de um dia inteiro passeando pela cidade. Oportunidade rara aquela. Nos últimos meses, meu pai quase sempre se encontrava fora. Viagens de negócios, despistavam ele e tia Lúcia, que cuidava de mim a maior parte do tempo desde a morte de minha mãe. Você é muito criança pra se preocupar com isso, seu pai apenas trabalha demais, desconversava ela quando eu indagava o motivo de ausências tão prolongadas. A gente precisa sair logo daqui, eles já devem conhecer esse endereço. Qualquer dia vamos ter uma surpresa, ouvi, sem entender direito, minha tia dizer a meu pai certa vez.

O tal endereço a que ela se referia era um prédio antigo e meio decadente no centro da cidade, para onde havíamos nos mudado poucos meses antes. A área, com  nítida vocação comercial, acolhia também uma ou outra construção residencial. O edifício pequeno era povoado, em sua maioria, por idosos que viviam sozinhos. Havia também alguns casais. Com meus 8 anos, eu era, com toda a certeza, o habitante mais novo do local. No apartamento ao lado do nosso vivia um homem estranho. Usava roupas espalhafatosas e coloridas demais, além de muitas pulseiras, anéis e cordões. Com voz afinada, de timbre singular, circulava pelo edifício cantando um vasto repertório de músicas antigas. Parecia se transportar para um salão de baile. Os braços, estrategicamente posicionados diante do corpo, envolviam, com seus movimentos compassados, uma parceira imaginária tão entusiasmada quanto ele. Os outros moradores evitavam encará-lo sempre que o encontravam pelos corredores. Ele, por sua vez, não ligava para toda essa rejeição declarada. O comentário geral era que havia sido artista de teatro no passado.

— Seu Marcos, vieram uns homens aí procurar o senhor — anunciou Misael, o porteiro do prédio, assim que passamos pela portaria. Disseram ser da polícia. Fizeram questão de subir, apesar de eu falar que o senhor não estava.

Meu pai empalideceu. Visivelmente nervoso, durante alguns minutos, andou de um lado para o outro, sem saber direito o que fazer. Por fim, seguiu em direção ao elevador. Assim que entramos em casa, encaminhou-se ao quarto e começou a recolher uns papéis da mesinha de cabeceira. De modo desesperado, ia colocando tudo numa pasta de couro surrada. Tarefa apenas concluída, o interfone tocou. Era Misael avisando que os tais sujeitos da polícia haviam voltado. Fui então agarrado pelo braço e arrastado para fora. Acompanhado de um rapaz alto e moreno, vimos quando nosso vizinho desceu do elevador. Sem nada dizer, meu pai me empurrou na direção dos dois homens e tomou o rumo das escadas com a pasta nas mãos. Em seguida, o elevador se abriu novamente. Saíram os policiais. Foram direto ao nosso apartamento e começaram a tocar a campainha com insistência. Sem obter resposta, puseram a porta abaixo e passaram a revirar tudo. Instantes depois, quando os agentes da lei decidiram ir embora, eu já estava confortavelmente instalado no sofá da sala do seu Gumercindo — ou Gugu, como ele fazia questão de ser chamado — tendo diante de mim, na mesa de centro, um prato cheio de biscoitos recheados de morango, outro com um cacho de uvas verdes e frescas, além de um copo grande de iogurte de ameixa.

— Come tudo, anda, não faz cerimônia! Eu adoro esses biscoitos, mas não posso nem sonhar em comê-los. São calóricos demais. Preciso manter a forma… tenho tendência pra engordar, justificava enquanto passava a mão pela barriga um tanto protuberante. Se não me cuidar, viro uma bola. Que horror! Uma pessoa de certa idade como eu e nas minhas condições… Você entende, né? Mas sempre tenho alguns pacotes aqui em casa. Não posso deixar faltar. O Jonas, aquele moço que chegou comigo agora há pouco, você sabe… pois é, ele adora e briga muito quando não tem. Ele consegue ser tão desagradável às vezes, informou Gugu, sem esconder um certo constrangimento.

Não me foi nada difícil cumprir a ordem do anfitrião. Afinal, eu estava mesmo com fome. Assim que terminei o lanche, pude reparar melhor na decoração do lugar. Nas paredes da sala, fotos do dono da casa quase sempre acompanhado de outras pessoas, homens e mulheres tão alegres e sorridentes quanto ele. Notando meu interesse, Gugu comentou:

— Tenho tanta saudade desse tempo. Eu fui tão feliz… Tudo passa nessa vida. Claro que não foi só alegria. Havia a perseguição da polícia. Você acredita que cheguei a ser preso duas vezes? Até hoje não sei bem por quê. Nós apenas divertíamos as pessoas. Nunca me envolvi com drogas nem com nada ilegal… Gente como eu, você entende o que quero dizer, né? Hoje em dia a situação melhorou muito, mas ainda está longe do ideal. Olha essa foto aqui, sou eu no meio, tão jovem… É verdade, a vida passa rápido demais. À esquerda, Laura Mascarenhas; à direita, Leda Procópio. Elas eram tão lindas. Eu me lembro bem do dia em que essa foto foi tirada. Era a estreia de um espetáculo chamado Morena trigueira. Laura era a própria. Tão sensual e talentosa, que corpo… uma artista completa: cantava, dançava e atuava com perfeição. Sem exagero, é possível dizer que hipnotizava a plateia. Os homens ficavam loucos com ela… políticos, empresários, industriais, gente importante, de dinheiro. Recebeu inúmeras propostas de trabalho no exterior. Nunca aceitou. Morreu a coitadinha… uma morte tão trágica e violenta. Nem acreditei quando me disseram. Uma criatura assim tão doce não merecia passar por aquilo. Coisas da vida, fazer o quê? Olha essa outra. Aqui estou vestido de espantalho. Irreconhecível, né? Era uma peça cômica. Acredita que eu mesmo confeccionei meu próprio figurino? Sim, sempre tive habilidade pra costura. Até hoje ainda faço umas coisinhas quando me pedem. Não é só costura não, habilidades manuais em geral. Eu pinto e bordo, se é que você me entende. Nossa, que piada infame. Acho que ainda tenho essa fantasia em algum lugar. Em cima do armário. Vem cá, vem ver. Olha só que beleza. Perfeita. Xiiii, caiu um botão, mas tirando isso… E esse vestido, que maravilha. Esse foi de um outro espetáculo. É difícil acreditar que eu já coube nesse vestido. Eu fazia o papel de uma sogra megera. Comédia das boas. Ficamos um ano inteirinho em cartaz. Sucesso absoluto, até a crítica gostou. Casa cheia todo dia, gente voltando da porta. Na minha primeira aparição, eu entrava cantando junto com uns rapazes. Não espero mais você, pois você não aparece. Creio que você se esquece das promessas que me faz. E depois vem dar desculpas, inocentes e banais. Uma beleza. Ensaiamos tanto aquela coreografia. No final, eu era erguido bem alto pelos rapazes. Eu adorava essa parte. Me sentia uma verdadeira estrela. A plateia sempre aplaudia com entusiasmo o fim da cena. E as músicas? Eram todas excelentes. A trilha sonora foi composta pelo Vicente Pedroso especialmente pra essa peça. Menos essa que eu cantei agora pra você. Essa é do Noel Rosa. Vicente Pedroso, um compositor de mão cheia. Hoje em dia ninguém mais fala nele. Morreu na mais absoluta miséria uns cinco ou seis anos atrás. Três linhas no jornal. Três linhas, que absurdo. Lamentável! Ah, essa camisa… eu já nem me lembrava dela. Usei num espetáculo chamado… como era mesmo… minha memória anda péssima… Folias tropicais! Outro êxito estrondoso da nossa companhia. Você acredita que um dia, durante uma das apresentações, a sessão foi interrompida por policiais ou gente do exército, sei lá. Anos 1960 no Brasil, a coisa não era mole. Parece que eles estavam a mando de um general que queria retirar o espetáculo de cartaz a qualquer custo sob a alegação de que era imoral, de que havia mulheres quase nuas em cena blá-blá-blá… pois sim, logo ele que colecionava amantes. Depois nós descobrimos tudo. Ele levou o fora de uma das nossas atrizes e queria se vingar. Como tem gente ordinária nesse mundo, gente que vive de aparência, que não pensa duas vezes antes de prejudicar os outros, de cometer injustiças. Que horror, às vezes o ser humano me assusta. O tiro saiu foi pela culatra. Bem feito. A gente acabou voltando. Sim, nosso diretor mexeu lá os seus pauzinhos, e, no fim das contas, toda essa história da interdição funcionou como ótima publicidade pro show. E essa roupa de baiana? Essa foi usada pela Madalena Abdala. Não me recordo bem em que espetáculo. Às vezes, nós reformávamos os figurinos pra usar de novo em outra oportunidade. Não éramos uma companhia rica, mas criatividade e bom gosto nunca nos faltaram. Sabe o que eu acho? Que preciso organizar isso aqui, preservar esse acervo, quem sabe doar pra algum museu, alguma instituição que possa cuidar direito de todo esse material. Isso conta um pouco da história do teatro nacional. O Jonas diz que eu já estou velho, que não tenho mais disposição pra nada, que eu devia era jogar tudo isso fora. Esse lixo, jogar esse lixo todo fora. É assim que ele fala. Meu Deus, ele consegue ser tão desagradável às vezes…

Penso que ele continuou narrando suas histórias do passado. É certo que falava muito mais para si mesmo do que para mim. Eu, cansado como estava, acabei adormecendo na cama macia do Gugu. Foi um sono profundo e reparador. No dia seguinte bem cedo, meu pai e tia Lúcia foram me buscar. Enquanto deixava o apartamento conduzido pelos dois, olhei para trás e vi Gugu acenando da porta sem dizer palavra. Não posso afirmar com segurança, mas acho que ele chorava. Um choro discreto e contido, que não combinava nada com seu jeito expansivo de ser.

 

 

 

 

 

 

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Author

Carioca, licenciado em Letras (Português – Literaturas) pela UFRJ, mestre e doutor em Língua Portuguesa pela mesma instituição, com pós-doutorado em Língua Portuguesa pela USP. Participante de 32 coletâneas literárias. Autor do livro de contos "A angústia e outros presságios funestos" (Prêmio Wander Piroli, UBE-RJ). Professor de oficinas de Escrita Criativa. Revisor de textos. Toda quinta-feira, no ArteCult, publica um conto em sua coluna "CONTO DE QUINTA", que integra o projeto "AC VERSO & PROSA" junto com Ana Lúcia Gosling (crônicas) e Tanussi Cardoso (poemas).

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