CONTO DE QUINTA: Pés para fora da coberta

 

PÉS PARA FORA DA COBERTA

 

Era 23 de junho do ano passado. Nesse dia, mamãe completou 90 anos. Família reunida no início do inverno em Teresópolis, numa daquelas ocasiões em que o aparelho de chá que minha avó ganhou da tia Olga deixava a cristaleira. Pega com cuidado, não vai me deixar cair nada. Pelo amor de Deus, esse aparelho é francês, um presente de casamento da tia Olga pra minha mãe. Sim, acho melhor lavar, tá guardado há tanto tempo, mas muita atenção, por favor… Até consigo ouvir a voz austera da mamãe fazendo um discurso parecido com esse. Ela não perdia nenhuma chance de relembrar o valor do presente e também a história de como artigo tão precioso passou a fazer parte do acervo familiar. Luciana, Marcelo, Elisa e eu fomos os primeiros a chegar. Logo em seguida, apareceram Pedro, Ester, Vítor e Vinícius. Paulo foi o último. Era a primeira vez que saía de casa desde que tinha ficado viúvo.

As empadas de camarão e os pastéis de queijo enviados por tia Emília pousados sobre a toalha de linho bege ocupavam o lugar que mais tarde seria preenchido pelo manjar com calda de ameixa e pelo quindim. Ravióli de espinafre com ricota e nozes elogiado por todos. Vinho Lambrusco espumante, coro de “Parabéns a você” acompanhado pelo choro tímido de Luciana. “Copacabana” saindo da TV na voz de Dick Farney e o cheiro do café recém-preparado pela Marlene tomavam o ambiente. A maior parte de nós ria. Ou ao menos sorria. Às vezes falávamos alto, cantarolávamos ou cantávamos. Um filme de Saura com dez anos de antecedência. Somente Elisa, entretida com a boneca nova, que falava e mexia os bracinhos, e Paulo, ainda não plenamente recuperado da partida repentina de Virgínia, pareciam um pouco distantes.

Depois da torta de frutas, a favorita da mamãe, servida acompanhada de mais um coro sincero e animado de “Parabéns a você”, Pedro teve a ideia.

̶  O que você acha se fizéssemos a foto? Precisamos fazer a foto.

̶  Foto? Que foto?  ̶  indaguei.

̶ Você não reparou, Leonor, são quatro gerações: mamãe, você, Luciana e Elisa. A mais velha com 90 e a mais nova com… Quantos anos tem a Elisa?

̶  Seis.

̶ Podemos providenciar agora mesmo. Escolhemos um cenário caprichado, eu tiro com o celular. Não quero soar funesto ou algo assim, mas esse panorama não vai durar muito tempo. Noventa anos não são noventa meses…

̶ Eu sei, Pedro, já entendi, não precisa entrar em detalhes, especialmente num dia como hoje.

Olhei em torno e busquei mamãe. Acomodada na poltrona perto do quadro com a foto do seu casamento, realizado quase 70 anos antes, ela trazia no rosto a mesma expressão de sabedoria de uma década atrás, época da minha separação do Alberto, quando me disse:

̶  Leonor, você deveria ter deixado os pés para fora da coberta. Em alguns casos, é a melhor coisa a fazer.

̶  Como assim? Que história é essa de pés para fora da coberta, mamãe?

̶  Você sabe, seu pai sempre foi muito friorento. Na nossa cama, insistia para que a gente se cobrisse deixando só a cabeça de fora, entende? Eu me sentia abafada, mas aceitava. Num protesto silencioso, colocava os pés para fora. Quando a gente se casa, vão acontecer muitas situações em que vai ser necessário pôr os pés para fora da coberta, percebe, minha filha?

Tudo foi decidido num ímpeto. Nunca fui fotogênica e jamais gostei de fotos. No jardim, posamos as quatro ao lado das roseiras amarelas, especialmente floridas naquela ocasião. Pedro ia dirigindo a cena. Mamãe e eu, à esquerda; Luciana e Elisa, à direita. Sorrisos discretos, poses contidas, expressões que buscavam aparentar contentamento… Luciana sugeriu que fizéssemos também alguns registros perto da piscina. A água, como de costume, estava limpa. Apesar disso, algumas folhas caídas da jabuticabeira plantada perto da churrasqueira podiam ser vistas em pontos esparsos do espelho d’água. Josué sempre cuidou do jardim, do quintal e da horta muito bem. Cerca de duas horas depois, fomos dormir.

No dia seguinte, por volta das dez, já estávamos acomodados dentro do veículo que nos levaria ao Rio de Janeiro. Ao volante, Marcelo, animado como uma criança que estreia um brinquedo novo. No Rio, um almoço na casa de tia Emília nos aguardava. Noventa anos não são noventa meses…

*****

Mamãe, Marcelo, Luciana, Paulo e eu estávamos bem. Pedro, Ester e os meninos tinham vindo num outro carro, logo atrás. Na nossa van, arranhões e feridas sem gravidade decoravam alguns braços, pernas e cabeças. Um pouco de sangue manchava os bancos e a lataria… E era só. Demoramos um pouco a entender o que tinha acontecido. Infelizmente, quando os bombeiros chegaram nada puderam fazer por Elisa.  Um dos soldados foi então até a ambulância e, deixando seus pezinhos delicados de fora, cobriu o corpo inerte de minha neta com um lençol.

 

 

CÉSAR MANZOLILLO

 

 

 

 

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Author

Carioca, licenciado em Letras (Português – Literaturas) pela UFRJ, mestre e doutor em Língua Portuguesa pela mesma instituição, com pós-doutorado em Língua Portuguesa pela USP. Participante de vinte e quatro antologias literárias. Autor do livro de contos A angústia e outros presságios funestos (Prêmio Wander Piroli, UBE-RJ). Professor de oficinas de Escrita Criativa. Revisor de textos.

3 comments

  • O nível de detalhamento dos seus contos é fantástico, parabéns mesmo. Isso nos transporta ao contexto do conto de uma forma arrebatadora. E obrigado por trazer nos seus contos seu olhar atento em relação as interações e comportamentos humanos, muitas vezes com um ironismo só seu
    Os plot twist finais viraram uma marca, alguns trágicos, mas até nisso vc representa bem a vida. Sua forma de tratar “a vida como ela é”

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