
com César Manzolillo
O DIÁRIO DE LIA
14 de janeiro
Hoje encontrei uma foto antiga dos trigêmeos, ainda pequenos, sentados no sofá com os rostos lambuzados de chocolate. Lembro bem o dia em que essa foto foi tirada. Sorri. Depois chorei. Não sei exatamente por quê. Por muito tempo eu não soube aproveitar esses momentos. Estava sempre cansada, sempre tentando dar conta.
2 de fevereiro
Rui tem sido gentil. Não me cobra, não me interroga, não me confronta. Às vezes, isso me dói mais do que se ele gritasse. O silêncio dele é cheio de dignidade. E eu me pergunto se mereço. Tento compensar com gestos, com presença. Mas sei que há feridas que não se fecham com palavras, só com o tempo. Não consigo imaginar como seria minha vida sem ele.
18 de março
Os meninos estão adultos. Cada um com seu jeito, suas escolhas. Às vezes, me pego observando-os e tentando encontrar traços meus neles. Um gesto, uma expressão, uma mania, um hábito. É como se eu quisesse me reafirmar como mãe, como parte da história deles.
31 de março
Hoje sonhei com Pedro, o homem que, tantos anos atrás, ousou abalar as estruturas do meu sólido casamento. Não era um sonho romântico. Era estranho, quase desconfortável. Ele estava calado, distante. Acordei com uma sensação de vazio. Não sinto falta dele, sinto falta do que ele representava: a promessa de uma vida diferente e plena. Promessas são fáceis de fazer, mas é difícil sustentá-las.
7 de abril
Voltei a escrever. Pequenos contos, crônicas, poemas. Nada muito elaborado, acho mesmo que não tenho assim tanto talento. Mas é como se, ao escrever, eu organizasse meus pensamentos. Como se desse forma ao que ainda está nebuloso. Rui leu um dos contos e disse que gostou. Fiquei emocionada. Não pelo elogio, mas porque ele se permitiu entrar no meu mundo.
25 de maio
Hoje, enquanto arrumava a estante, encontrei um caderno antigo com poemas que escrevi na adolescência. Tão ingênuos e tão intensos. Fiquei surpresa com a força das palavras. Eu já buscava algo que não sabia nomear. Talvez liberdade, talvez amor… talvez apenas um espaço onde eu pudesse existir sem pedir licença.
6 de junho
Leonor está radiante com a gravidez. Ela sempre foi minha nora preferida. Fala dos bebês como se já os conhecesse. Ela se assustou um pouco quando descobriu que eram gêmeos. Eu a escuto com atenção, mas também com uma pontinha de medo. Medo de que ela, um dia, também se perca. Que se esqueça de si mesma enquanto cuida dos outros. Quero dizer a ela que isso acontece, que é preciso vigiar o próprio coração.
20 de junho
Fui visitar minha antiga escola. Vera logo me reconheceu e me abraçou com carinho. Disse que sentem falta das minhas aulas de gramática. Fiquei comovida. Mas não senti vontade de voltar. Aquele tempo passou. Agora quero ensinar de outro jeito, com menos teoria e mais afeto.
21 de julho
O inverno tem sido suave este ano, mas dentro de mim há uma brisa fria que insiste em soprar. Às vezes, mesmo cercada de afeto, sinto uma solidão antiga. Não é falta de companhia. É uma saudade de mim mesma. Da mulher que sonhava sem medo, que acreditava que tudo podia ser reinventado. Tento reencontrá-la nas pequenas coisas: um chá quente, um livro esquecido, uma conversa descompromissada sobre a novela das nove.
15 de agosto
Rui me levou para jantar fora. Um restaurante simples, mas aconchegante. Conversamos sobre os planos para a casa e sobre o tempo. Ele me olhou com ternura. E senti, pela primeira vez em muitos anos, que eu estava exatamente onde deveria estar.
3 de setembro
Recebi uma mensagem de uma ex-colega da faculdade. Ela perguntou se ainda escrevo. Disse que se recordava das minhas redações e da forma como eu descrevia sentimentos com precisão. Fiquei tocada. Às vezes, a gente necessita que alguém nos lembre do que somos capazes. Escrevi um poema novo hoje. Não sei se está bom, mas está verdadeiro. E isso já é muito.
20 de outubro
Este diário tem sido meu espelho. Nele, vejo a mulher que fui, a que tentei ser, e a que sou agora. Não sou perfeita, nunca fui. Mas sou inteira. E isso, hoje, me basta.
29 de outubro
Os sapatinhos estão quase prontos. Miguel e Rafael estão chegando para alegrar a vida de Vicente e Leonor. Da família inteira, penso. Fiz questão de tricotar cada par com calma, como se cada ponto fosse uma história. Um pedido de perdão ou uma promessa de cuidado. Uma celebração da vida que continua, apesar dos desvios, dos tropeços, das quedas.
12 de novembro
Fui ao mercado com Rui. Escolhemos frutas, falamos sobre receitas, rimos de uma senhora que confundiu o preço das bananas. Parece banal, mas foi um dos momentos mais doces dos últimos tempos. Há uma beleza silenciosa na rotina compartilhada. Uma paz que não se grita, mas se sente.
28 de dezembro
O ano está terminando. Olho para trás e vejo uma estrada cheia de curvas, algumas esburacadas, outras floridas. Aprendi que o amor não é feito só de paixão, mas de presença. Que perdão não é esquecimento, mas escolha. E que a felicidade, não raro, mora na simplicidade de um abraço no fim do dia. Ah, Miguel e Rafael acabaram de nascer. Eles são perfeitos. E lindos…

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