CONTO DE QUINTA: O Criador informa: algumas pessoas foram magoadas e feridas ao longo da vida

Foto: iStock/SoniaBunet

 

O CRIADOR INFORMA: ALGUMAS PESSOAS FORAM MAGOADAS E FERIDAS AO LONGO DA VIDA

 

(Domingo de manhã, quarto de Sofia)

O rádio havia ficado ligado a noite toda. Naquele momento, ia ao ar um debate sobre a epidemia letal que tinha começado havia mais de um ano. Infelizmente, diziam os cientistas, o fim do tormento não era esperado para breve. Uma nova variante do vírus, muito mais transmissível, havia surgido no Marrocos, perto da fronteira com a Espanha. Sofia escancarou a janela e deu de cara com uma nuvem acinzentada e espessa. Aquele borrão ostensivo ousava cobrir quase todo o céu e incomodava pela capacidade de ofuscar a bela paisagem natural da zona sul do Rio de Janeiro, cidade que essa paulista de Ribeirão Preto havia escolhido para viver dez anos atrás. Na noite anterior, havia ido dormir ouvindo gargalhadas inoportunas provenientes do apartamento vizinho. O som, mais alto do que de costume, parecia indicar uma festa. A impressão que se tinha era que os donos da casa e seus convidados não comiam, não bebiam, não dançavam, não conversavam, não se beijavam, não se drogavam, não trepavam. Enfim, não faziam nada do que se costuma fazer numa situação do gênero. Apenas gargalhavam de modo histérico e inconveniente. E ouviam música, claro. Uma salada impensável, de gosto duvidoso, cantores de que Sofia já nem se lembrava. Vários simplesmente desconhecia. Algumas poucas canções daquele eclético repertório a fizeram recordar momentos importantes de sua vida. De sua vida com Olavo inclusive, uma das coisas boas que o Rio havia lhe proporcionado. Sim, é verdade, um dia tinham sido felizes juntos. Pouco mais de meia hora tinha se passado. O panorama havia se modificado um pouco. Agora, um solzinho pálido e preguiçoso tinha conseguido furar o bloqueio da nuvem escura e invadia parcialmente o quarto.  Ainda deitada na cama, Sofia ligou para Olavo. O barulho das risadas e das músicas ainda reverberava em seus ouvidos. O que tinha a lhe dizer não seria fácil, mas estava decidida a resolver a situação o mais rapidamente possível. Por ela, liquidaria a questão com apenas uma frase, de preferência algo bem curto como acabou, fim, chega, basta, já deu. Mas uma relação, mesmo uma fracassada como a que mantinha com seu colega de firma, não se termina assim, de forma tão econômica. Não é essa a praxe. Olavo mostrou-se surpreso. Pediu e até implorou nova chance. Não gostava de ser contrariado e tinha por hábito dar sempre a última palavra. Nas semanas seguintes, continuou a procurar Sofia e a tentar uma reaproximação. Ela seguia irredutível. Raramente voltava atrás quando tomava uma decisão. Era patético ver um sujeito de mais de 40 anos apresentando um comportamento tão infantil. O que estaria acontecendo com os homens, se perguntava. Por que todos pareciam sofrer de imaturidade crônica? Cerca de quatro meses depois, Olavo sumiu de repente. Na empresa, diziam que havia sido transferido para Salvador. Sofia passou a sentir falta dos telefonemas diários, das cartas melosas, dos bilhetinhos furtivos, dos e-mails caprichados e dos torpedos insistentes do ex. E do sexo também. Como era bom de cama o danado, tinha de admitir. Ficou saudosa do passado nem ela conseguia explicar bem por quê. Somos todos nós, seres humanos, um poço de contradições, havia ouvido num filme alemão na semana passada. Só pode ser isso. Queremos o que não temos e desprezamos o que conquistamos. Um dia, quando já haviam se passado mais de dois anos desde o último contato, Olavo voltou. Reassumiu seu posto e passou a encontrar a ex-namorada com frequência no ambiente de trabalho. A retomada do romance estava destinada a se tornar realidade. Foi assim que, num barzinho da Lapa, ao som de um chorinho bem tocado, selaram o acordo. Estavam namorando de novo.

 

*****

 

(Sábado à noite, apartamento de Sofia)

Depois do sexo, Sofia foi até o banheiro enquanto o homem, olhar meio perdido, continuava deitado na cama. Olavo apresentava uma expressão transtornada, o corpo envolvido por uma nuvem negra de ressentimento e amargura. Assim que a mulher voltou ao quarto, ele disse com voz trêmula:

– Você não devia ter feito o que fez. Quem vai terminar com você sou eu, sua ordinária. Olha bem… Eu tenho uma surpresa, falava, tal qual um personagem de telenovela mexicana, ao mesmo tempo que exibia uma pistola.

Foram dois tiros no peito antes de a mulher cair diante do armário. Já não respirava. Olavo ainda continuava sendo alguém que não admitia ser contrariado e que mantinha o hábito de sempre dar a última palavra. Sofia nunca poderia imaginar que sua vida chegaria a termo assim, de forma tão cafonamente melodramática.

CÉSAR MANZOLILLO

 

 

 

 

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Author

Carioca, licenciado em Letras (Português – Literaturas) pela UFRJ, mestre e doutor em Língua Portuguesa pela mesma instituição, com pós-doutorado em Língua Portuguesa pela USP. Participante de 32 coletâneas literárias. Autor do livro de contos "A angústia e outros presságios funestos" (Prêmio Wander Piroli, UBE-RJ). Professor de oficinas de Escrita Criativa. Revisor de textos. Toda quinta-feira, no ArteCult, publica um conto em sua coluna "CONTO DE QUINTA", que integra o projeto "AC VERSO & PROSA" junto com Ana Lúcia Gosling (crônicas) e Tanussi Cardoso (poemas).

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