CONTO DE QUINTA: Na estrada

Foto: kyky.rawin739064 em Vecteezy

 

NA ESTRADA  

 

Era 1985, eu havia acabado de completar 15 anos. Vamos, não precisa ficar nervoso. Não confia em mim? meu pai procurava me tranquilizar. Naquele dia, fazia um sol forte de fevereiro. Estávamos quase partindo quando minha mãe apareceu no portão com o Juliano no colo e o Átila ao lado. Ela ignorava aonde estávamos indo, e senti que se despedia de um modo diferente do costumeiro. Na sua cabeça, nosso destino seria uma feira agropecuária em Serra Nova Imperial, município ao norte, próximo à fronteira com Santa Esperança. Minha mãe fez recomendações, pediu que telefonássemos ao chegar, perguntou se não havíamos esquecido nada, agasalhos, dinheiro, documentos, guarda-chuva, lanche… Se dependesse dela, levaríamos bagagem para ao menos uma semana. Ela nos beijou no rosto, o bebê dava tchau com a mãozinha, e o cachorro assistia a tudo ressabiado. Meu pai tentou dar a partida. A Brasília azul, com pelo menos cinco anos de uso, não pegava. Um sinal, deduzi. Ele saiu do carro, abriu o capô e pôs-se a investigar possíveis avarias. Minha mãe sugeriu falha da bateria, falta de óleo, de água no radiador ou mesmo de combustível. Quem assistia à cena até supunha estar diante de uma especialista. Meu pai não a escutava e continuava a pesquisar o defeito. Não sei qual foi o problema, mas ele conseguiu pôr o automóvel em movimento. Motor ligado, um ronco estranho, diverso do usual. Está tudo combinado, fica sossegado, ele buscava desvalorizar o contratempo, e minha mãe perguntava se não seria melhor deixarmos a visita à feira para outro dia. Antes de nos acomodarmos novamente, meu pai dirigiu-se ao jardim, lavou as mãos na bica atrás da roseira, fez um carinho na cabeça do Átila, que agora latia e rodopiava agitado, e entrou pela porta da cozinha. Retornou trazendo uma sacola na mão, jogada de modo um tanto displicente no banco de trás. Em seguida, sentou-se na frente do volante e, com um lenço sacado do bolso dianteiro da calça, enxugou algumas gotas de suor na testa antes de finalmente pegarmos a estrada. Como o funcionário de uma companhia ferroviária, anunciou com solenidade: Máquina tiniiiiiiindo! Trajeto com duração prevista de quaaaatro horas. Tenho mesmo de ir? perguntei ainda perto de casa. Precisa ser hoje? Não pode ser outro dia? Deixa de besteira. Comigo foi a mesma coisa. Seu avô… Olha, já sei, liga o rádio, a gente se distrai, o tempo vai passando… Que tal? Quer chocolate? Pega aí atrás. Tem também pastilha de hortelã. Não pode esquecer a pastilha de hortelã, hein. Tá tudo acertado. Fica relaxando, ouvindo música… E falou mais isso e mais aquilo, emendando uma frase na outra, assim como quem confecciona uma colcha de retalhos. Liguei o rádio e circulei por várias estações sem encontrar nada além de notícias desinteressantes e músicas desconhecidas. Desliguei e resolvi me descontrair olhando a paisagem. Até ali, um cenário familiar. Nossa Senhora Auxiliadora fica na mesma direção de Planaltina do Brejo, cidade onde moravam meus avós maternos. Lembrei do Jonas, meu irmão de 13 anos falecido num acidente de moto no ano passado, antes da época de fazer o mesmo percurso com nosso pai. O primo Carlos, que estava na direção, também morreu. Tia Cecília e tio Douglas nunca aceitaram a perda, e o quarto do filho único ficou um bom tempo conforme ele deixou, como se aguardasse sua volta. Pensei nos colegas da escola. Como será que reagiriam quando eu contasse? O Evandro ia querer se inteirar dos detalhes. O Joaquim faria perguntas constrangedoras. O Plínio provavelmente duvidaria de tudo… Bem, eu poderia aumentar ou distorcer os fatos ou simplesmente não mencionar nada. Se nossa empreitada não desse certo, ninguém precisaria saber. Seu Alberto não era má pessoa, apenas achava que tudo deveria funcionar como ele desejava. Minha avó vivia dizendo que ele tinha ficado assim depois que a primeira mulher o traiu com um tal de Adamastor Figueira, colega da fábrica de máquinas de escrever onde meu pai trabalhou a vida inteira. Na oportunidade, comentários maldosos o levaram a querer largar o emprego e até mudar de cidade, mas as coisas acabaram se ajeitando. Metade da viagem concluííííída, informou o velho (acho que na ocasião eu ainda não me referia a ele dessa maneira) no mesmo tom de funcionário de companhia de trens de antes. Com meu pai fumando mais do que o habitual, havíamos parado num lugar circundado por diversos tons de verde, capim rasteiro, capim-navalha, marias-sem-vergonha, espadas-de-são-jorge, onde o barulho da rodovia competia com trinados e gorjeios sem que fosse possível identificar um vencedor. Meu pai se voltou para o banco de trás e pegou sua antiga câmera. A paisagem pede fotos, informou. Tarefa realizada, no seu estilo prático e objetivo característico, me perguntou enquanto fechava a braguilha: Vai também? Ainda temos chão. Catei uma árvore capaz de oferecer um pouco de privacidade e me aliviei. O mijo escorria, e eu pensava no restante do itinerário. Cada minuto que passava diminuía a distância entre a insegurança e o desconhecido. Talvez estivesse supervalorizando o episódio. Afinal, o velho não me prepararia nenhuma cilada. Entre cochilos e vigílias, venci o resto do caminho. Chegamos a Nossa Senhora Auxiliadora debaixo de uma garoa imprevista. O guarda-chuva, recomendado por minha mãe e esquecido por nós, acabou não fazendo falta. Meu pai estacionou a uns 200 metros do local aonde deveríamos ir. Instalados em poltronas de feltro posicionadas embaixo de um lustre de cristal adornado com pingentes, eu observava o ambiente. Nada ali correspondia ao que havia imaginado. Era tudo muito mais claro e limpo. Ao fundo, uma música suave e de bom gosto podia ser ouvida. A responsável pelo estabelecimento se aproximou, nos cumprimentou e puxou meu pai para um canto. Eles conversaram por demorados dois minutos, e percebi que já se conheciam. Dona Fátima, vê lá se proprietária de um negócio desses pode ter nome de santa, ainda mais da Virgem Maria, mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo e motivo de devoção de minha mãe, devia ter por volta de 70 anos. Usava maquiagem discreta no rosto levemente enrugado e tinha cabelos pintados de preto presos num coque. Fui orientado a subir ao segundo andar, terceira porta à esquerda depois que terminasse a escada. Passos vacilantes, o velho ia me dizendo palavras de encorajamento lá embaixo. Não prestei atenção e fui adiante ao mesmo tempo que metia uma pastilha de hortelã na boca. Vacilei por uns momentos antes de bater. Sem demora, Cibele (nome de guerra, com certeza) abriu. Ruiva, cabelos lisos na altura dos ombros, sardas salpicadas pelo colo e costas, voz doce e sorriso acolhedor. Você que é o filho do seu Alberto? Sabe que parece com ele? Como se chama? Hesitei se deveria revelar meu nome verdadeiro. Acabei respondendo apenas Pedro. Fizemos o que tinha de ser feito em cerca de uma hora. Na saída, meu pai começou a puxar assunto. Conversamos sobre o acontecido sem entrar em detalhes. Ele entendeu e não insistiu. Me sentia estranho. Feliz, aliviado, culpado, tudo junto.

*****

Isolado na área externa da capela, eu olhava as fotos que meu pai havia batido 35 anos atrás no caminho para Nossa Senhora Auxiliadora e nem notei quando minha mãe e Juliano se aproximaram. Pedro, meu filho, vamos indo. Acabamos de fechar o caixão. O corpo do seu pai já vai sair.

 

 

CÉSAR MANZOLILLO

 

 

 

 

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Author

Carioca, licenciado em Letras (Português – Literaturas) pela UFRJ, mestre e doutor em Língua Portuguesa pela mesma instituição, com pós-doutorado em Língua Portuguesa pela USP. Participante de vinte e quatro antologias literárias. Autor do livro de contos A angústia e outros presságios funestos (Prêmio Wander Piroli, UBE-RJ). Professor de oficinas de Escrita Criativa. Revisor de textos.

3 comments

  • César Manzolillo é um mestre em contos. Seu texto passeia pelo ambiente retratado como uma câmara lenta e detalhista. Detalhista, ao mesmo tempo que seu papo é reto e nada sutil. A sutileza fica no detalhe final, no fechamento da história. Quase no ponto final.
    Parabéns!

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  • O enredo, permeado de suspense e dramaticidade, narra a trajetória de uma viagem planejada pelo pai para a iniciação sexual do filho, um comportamento paternal comum para o contexto da época. É interessante refletir sobre as implicações psicológicas e existenciais da narrativa, apresentando o ciclo cronológico da vida.
    Como sempre, César Manzolillo demonstra criatividade e domínio desse gênero literário. Parabéns!

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