CONTO DE QUINTA: Mãe

 

MÃE 

   

O quarto ainda estava do jeito que ele havia deixado antes de sair: toalha molhada em cima da cama e um pé de chinelo emborcado embaixo da cama, camisa do Real Madrid usada pendurada nas costas da cadeira, meião de futebol dentro da chuteira ao lado da escrivaninha, vidro de perfume destampado em cima da mesinha de cabeceira e portas do armário entreabertas. Ele estava esperando aquela festa havia meses.

Era madrugada de sábado, véspera do Dia das Mães. Por volta das 3h30, recebi um telefonema de alguém que se identificava como delegado Santiago. A ligação estava ruim, e não consegui entender direito o que ele falava. Mas pude perceber que algo sério havia acontecido com o Gabriel.

Quando ele nasceu, eu tinha 21 anos. Uns dois anos antes, eu havia começado a frequentar a Igreja Presbiteriana Luz do Mundo. Foi lá que conheci o Antônio, o filho do pastor, e logo começamos a namorar. Ele era muito religioso e estava decidido a se casar virgem. Eu não era mais virgem e queria que a relação evoluísse.  Então tive uma ideia: preparei um jantar especial, uma receita de filé-mignon com abóbora cabotia refogada e risoto de parmesão que tinha visto num programa de TV, e seduzi o Antônio. Ele era inexperiente e se atrapalhou com o preservativo. Engravidei nesse dia. Durante a gestação, enjoei de tudo, inclusive do Antônio. Quando o Gabriel nasceu, já estávamos separados. Algum tempo depois, conheci o Murilo num churrasco na casa da Vânia, minha melhor amiga. Demorou só um mês pra gente se casar.

Cheguei ao local indicado pelo delegado Santiago e percebi a movimentação da equipe tentando salvar o Gabriel. Num determinado momento, um dos médicos, ou enfermeiro, não sei, se aproximou de mim e, falando baixinho no meu ouvido, me deu a pior das notícias. O Murilo me abraçou e tentou me consolar. Desmaiei.

Havíamos decidido nos transferir para Teresópolis. Pensávamos que uma mudança de ares nos faria bem. A ideia era ficar mais perto da minha mãe, que já estava velhinha. Por volta das 9h da manhã, Murilo entrou no quarto e me pegou deitada na cama do Gabriel abraçada ao travesseiro dele. Livros, CDs, DVDs, roupas, calçados, a coleção de bonés, eu não havia encaixotado quase nada, e os funcionários da firma encarregada da mudança já estavam lá embaixo. Quase cinco anos se passaram, ainda não sei o que fazer com todas essas coisas…

 

 

CÉSAR MANZOLILLO

 

 

 

 

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Author

Carioca, licenciado em Letras (Português – Literaturas) pela UFRJ, mestre e doutor em Língua Portuguesa pela mesma instituição, com pós-doutorado em Língua Portuguesa pela USP. Participante de 32 coletâneas literárias. Autor do livro de contos "A angústia e outros presságios funestos" (Prêmio Wander Piroli, UBE-RJ). Professor de oficinas de Escrita Criativa. Revisor de textos. Toda quinta-feira, no ArteCult, publica um conto em sua coluna "CONTO DE QUINTA", que integra o projeto "AC VERSO & PROSA" junto com Ana Lúcia Gosling (crônicas) e Tanussi Cardoso (poemas).

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