
com César Manzolillo

DESINIBIDA E ORDINÁRIA
Chegou ao bar, radiante:
— Vocês nem imaginam aonde eu vou amanhã.
Os amigos de Joel suspenderam o papo, entreolharam-se e ficaram atentos à espera da revelação.
— Vocês se lembram da Rosana, aquela minha vizinha?
— A gostosona que mora ao lado? — perguntou Duílio.
— Aquela que é casada com um lutador de vale-tudo? — emendou Eugênio.
— Isso, um fortão — arrematou Getúlio.
Há mais ou menos dois anos, Rosana e Alfredo tinham se mudado para o apartamento ao lado. Na época, eram recém-casados e pareciam apaixonados. Pelo menos era o que os barulhos provenientes do quarto do casal, ouvidos por Joel quase todas as noites, indicavam. Mas, como todo mundo sabe, desde o início dos tempos, aliança de ouro no dedo anular esquerdo, certidão de casamento assinada com firma reconhecida em cartório e juras de fidelidade eterna diante do padre nunca foram empecilho pra quem se dispõe a variar o cardápio.
Era um sábado escaldante de janeiro quando Rosana e Alfredo vieram morar no 102. Depois da morte de dona Henriqueta, uma velhinha nonagenária, solitária e meio senil, que vivia ali na companhia de sete gatos e dois cachorros, o imóvel ficou pelo menos oito anos fechado. Os herdeiros, sobrinhos-netos ou coisa parecida, gente emocional e geograficamente distante da mulher, mal sabiam de sua existência até uma semana antes de seu falecimento. Foi como ganhar na loteria sem ter jogado. No entanto, brigas, discussões, desentendimentos e principalmente a busca pelo lucro máximo foram impedindo a realização de qualquer negócio envolvendo a herança. Quando os nós foram finalmente desatados, Alfredo e Rosana entraram na história, tumultuando a vida pacata de Joel.
Deixando de lado o fraseado empolado, a expressão rebuscada e a construção castiça, é possível afirmar que Rosana era boa pra chuchu, gostosa pra caramba e bonita pra dedéu. Dona de um jeito assim, como dizer, meio desinibido e ordinário, poderia circular com desenvoltura pela obra de Sérgio Porto ou Nelson Rodrigues sem fazer feio. Nos pensamentos de Joel, ela imediatamente ganhou lugar privilegiado, levando-o a tomar atitudes até então impensadas. Sem falar que ela sabia mesmo como provocar e seduzir. Homem tímido, discreto e meio apagado, que nunca chamou atenção por onde passava, Joel começou a ter a vida bagunçada de uma hora para a outra. E as curvas de Rosana eram as responsáveis por isso. Era uma situação nova e estranha, além de uma indicação segura de que o pecado morava mesmo ao lado. Falando em pecado, nosso mais novo candidato a don juan se encontrava convencido de que seu destino era de fato pecar. De preferência em companhia de Rosana. Acontece que ela não colaborava e resistia com bravura a todas as investidas do mais novo candidato a garanhão do pedaço. A impressão que se tinha era que desejava valorizar ainda mais o seu passe já tão precioso. Mas Joel era brasileiro, não desistia nunca.
Foi então que a inauguração de um motel no bairro mudou os rumos da história. Não era uma casa de saliências qualquer. Por ali, tudo era luxuoso e requintado, e o bom gosto imperava em cada detalhe da construção. O prédio, imponente e chamativo, se destacava ainda mais quando comparado aos demais edifícios da área. As beatas da vizinhança evitavam até olhar para o lugar quando passavam em frente. As mais radicais faziam caminhos alternativos, mais longos, no intuito de não serem obrigadas a encarar aquele antro de prazer e luxúria. Apesar do seu jeito de mulher moderna, antenada e, por que não dizer, up-to-date, Rosana nunca havia entrado num estabelecimento desses. E morria de vontade de fazê-lo. Tudo começou quando leu numa revista uma reportagem em que uma atriz famosa da televisão declarava gostar de sair da rotina e apimentar seu relacionamento com visitas periódicas a motéis. Já Alfredo não demonstrava o menor interesse. Essa coisa de motel é pra quem não tem local, pra que pagar pra transar se a gente tem nossa casa, essa cama enorme e macia, repetia convicto sempre que a esposa tocava no assunto.
Desta vez a iniciativa partiu de Rosana, e os fatos se passaram mais ou menos como vai relatado a seguir. Garrafa térmica na mão, tocou a campainha do vizinho e disse que precisava de umas gotas de adoçante (ela não usava açúcar, queria manter a linha, a desculpa batida de pedir uma xícara de açúcar nesse caso foi adaptada), que tinha acabado de preparar um café quentinho quando percebeu que estava sem adoçante. Ele até poderia acompanhá-la, ela sabia fazer café como ninguém, detestava cozinhar, mas café era sua especialidade, a família inteira gostava, muita gente vinha visitá-la só pra ter a oportunidade de tomar seu café. E foi emendando uma frase na outra como quem vai confeccionando um colar de contas. Todo aquele palavrório sôfrego não apresentava lá grande significado e tinha apenas a função de preencher o vazio do silêncio, aplacando o constrangimento que às vezes o acompanha. Num determinado ponto da conversa falou que na semana seguinte Alfredo iria participar de uma competição no exterior. Comentou inclusive que ele tinha grande possibilidade de sair vitorioso, estava muito bem preparado, o técnico e até o patrocinador levavam a maior fé, era medalha na certa e mais isso e mais aquilo. Sabe como é, ia ficar alguns dias sozinha, uma companhia agradável poderia ser bem-vinda, até que disparou:
— Eu topo ir ao motel com você. Pode ser naquele novo, ali na rua detrás, sabe qual é? É tão pertinho de casa, a gente vai e volta num instantinho, não precisa nem tirar o carro da garagem. Você sabe do que eu tô falando, não sabe? Acho que nem é tão caro assim. Reparou como a fachada é bonita? E discreta também, no letreiro lá de cima o desenho da letra é meio impreciso, alguma coisa entre o H e o M, então quem não conhece vai ficar na dúvida, será que é hotel, será que é outra coisa? Eles tiveram também a boa ideia de botar um monte de vasos de planta bem em frente da porta de entrada, aí quem tá do outro lado não vê direito, bla-bla-blá…
Na verdade, o convite aceito lá no início de todo esse discurso jamais tinha sido feito. É claro que Joel já havia tentado levar Rosana pra cama, mas pensava em algo menos glamoroso, uma escapada na casa de um ou de outro num dia desses em que Alfredo estivesse fora estaria bom. E depois um motel assim tão perto de casa sempre oferece um risco maior de que algum conhecido os veja entrando ou saindo. As aparências estão aí pra serem mantidas, não é mesmo? Mas, se ela queria tanto, é óbvio que iriam. Acertaram tudo para dali a uma semana, e Joel ficou contando os dias para que a data combinada chegasse rápido. E ela, naturalmente, chegou. Afinal, apesar de tanto conhecimento científico e de tanta capacidade intelectual, o homem ainda não conseguiu inventar um mecanismo apto a impedir que os ponteiros do relógio realizem seu trabalho.
Dentro do quarto, Rosana se mostrava encantada com o ambiente. Os espelhos, as luzes, a cama, a banheira de hidromassagem, até mesmo a televisão e o rádio pareciam especiais por ali. Quem assistisse à cena poderia dizer, sem medo de errar, que ela estava feliz. Plena e simplesmente feliz, sem maiores adjetivos, qualificações, barreiras ou pudores. Pronta para dar e receber muito amor, Rosana sentia-se de fato empolgada e, sem grandes delongas, foi logo insinuando um striptease. Começou a cantarolar uma canção sensual (na comparação, o Happy Birthday, Mr. President da Marilyn era coisa de iniciante) e a contorcer com desenvoltura e malícia o corpo esguio, enquanto abaixava a alça do vestido, o que fez surgir uma pronunciada marca de biquíni.
Foi justamente nesse momento que um alarido começou a ser ouvido no corredor. Eram policiais, técnicos da companhia de água da cidade, empregados e até clientes do motel, que discutiam a respeito de furto de água ou coisa parecida. Assunto especializado demais, incompatível com o momento e o lugar. Alertadas por uma denúncia anônima, as autoridades se encontravam no local com o objetivo de interditar o estabelecimento, o que acabou sendo feito sem maiores dificuldades, não obstante os apelos em contrário do dono, do gerente, de alguns funcionários e principalmente de Joel, o homem cujo epíteto a partir daquela data passou a ser “aquele que comeu apenas a entrada e não teve a chance de saborear o prato principal”.

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