A FUGA E A FESTA
Pensa bem, Marcelo, você acha que vale a pena? Você pode se arrepender. Acabar com tudo assim, por uma bobagem. Você precisa concordar comigo que se trata de uma bobagem, poderia ter acontecido com qualquer um. Me dá a impressão de que está procurando uma desculpa. Você sente prazer em me ver implorando. Eu não me importo, eu me ajoelho se você quiser. É isso que você quer, Marcelo? Marcelo, olha pra mim, presta atenção, alguém como eu não se encontra em qualquer lugar. Lembra o dia em que a gente se conheceu? Você me pediu um cigarro, hein, você se lembra, Marcelo? Você tinha o que, uns vinte anos? Na época a gente ainda fazia coisas tolas como se envenenar aos poucos e ainda pagar por isso. Você ali sentado, no intervalo da aula de italiano… Você é tão italiano, essa pele branca, leitosa, macia, esses olhos amendoados, esse nariz grande. Não mudou nada, continua o mesmo tipo charmoso de sempre. Não precisa responder, isso, não fala nada, não estou te pressionando. Eu sei que você é bom, no íntimo você é bom. Só está meio perdido, não tá raciocinando direito. Uma pessoa com trinta anos ainda tem esse privilégio. Só que o tempo passa rápido… E o Bob, com quem vai ficar? Vocês são tão apegados. Ele não dorme enquanto você não chega. Ouve um barulhinho na porta, corre pra te receber. Não esquece que a casa é minha, e daqui você não leva ele de jeito nenhum. Pra falar a verdade, nem sei se você gosta dele tanto assim. Às vezes penso que você não tem a capacidade de amar ninguém. Nem o Bob nem a mim. Mas eu… Bob, cala a boca! A gente ainda tem tempo. Bob, merda! Cala a boca! Ainda podemos construir uma família de verdade. E aquelas visitas que a gente fez aos orfanatos? Alguns eram tão distantes, gastamos litros de gasolina. Nem o GPS conhecia aqueles lugares. Foi tudo inútil, perda de tempo? Diversão talvez? Passeio… Estávamos entediados, resolvemos pegar o carro e explorar locais desconhecidos. Foi isso, Marcelo? Aqueles dois irmãos gêmeos, não, não são gêmeos, mas são muito parecidos… Aqueles dois irmãos, nós gostamos tanto deles. O que eu digo pra eles? Chego lá e falo Pedro e João, ah sim, Antônio e Pedro, a família de vocês acabou, o Marcelo decidiu acabar com tudo. De repente, de uma hora pra outra. Puf! Sem explicação nem motivo. Não, Marcelo, aquelas crianças inocentes não merecem isso, você não pode fazer uma trapaça dessas com elas. E a Marlene? Ela já se acostumou com você, tem prazer em satisfazer seus caprichos. Os seus dois ovos de gema mole todo dia no café da manhã, a sua limonada suíça, o seu pudim de nata. A Marlene está na família há quarenta e cinco anos. Hoje posso afirmar: ela gosta mais de você, que ela conheceu outro dia, do que de mim. Acho que você não está preparado pra viver sozinho. Você não sabe se cuidar. As tarefas domésticas: lavar, passar, arrumar a casa, fazer comida… A não ser que… Marcelo, me diz, você já tem outra pessoa? Me fala a verdade, eu aguento, sou forte, mais forte do que você imagina. Não, não acredito nisso. Marlene, agora não, diz que não estou, hoje não tô pra ninguém, compreendeu? Nem pro Papa! Solta essa mala. Não vou deixar você sair. Marcelo, me escuta. Você vai se arrepender. Pensa na sua mãe. É, na sua mãe. Ela nos apoiou desde o início, a Iolanda me adora. A gente se entendeu logo de cara. Tivemos de enfrentar muitos obstáculos, mas sua mãe sempre esteve do nosso lado. Marceeeeelo, fecha essa porta. Marlene, me ajuda aqui, segura o Marcelo, pelo amor de Deus. Marlene, chama o Jair. Manda ele vir aqui. Que limpando piscina, mulher… É urgente! Manda o Jair furar os pneus do carro do Marcelo. Jair, não deixa o Marcelo ir embora! Marlene, o Marcelo tá fugindo… Socorro! Polícia… Alguém me acode! Ai, meu Deus!
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Três meses depois da partida de Marcelo, Renata já estava refeita. Seu aniversário seria dali a duas semanas, e os preparativos para a comemoração seguiam em ritmo veloz. Sim, ela fazia questão de festa. Afinal, não é todo dia que alguém completa 70 anos de idade.
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Bravo, César! Um fiel retrato da realidade arrematado por um final inusitado!
Mais uma pérola deliciosa de uma crítica ácida a alguns setores de nossa sociedade. Tensão, humor e ironia. Grande escritor! Que venha a próxima quinta!
Muito bom, adoro os finais dos contos do César
Ela tinha medo da liberdade e ser feliz, mas depois não se arrependeu, festejou.