com César Manzolillo
A DAMA DO ESCRITÓRIO
Madalena abriu a porta da sala lentamente e se atirou no sofá. Talvez Nestor já estivesse dormindo, apesar de ainda não ser tarde. Estava cansada. Não exatamente do trabalho, era a própria vida que a exauria. A coluna curvada, os cabelos desgrenhados e as olheiras fundas haviam se instalado em seu corpo de chofre alguns meses atrás. Como visitas inesperadas, chegaram sem anúncio e acomodaram-se bem no terreno. Não fosse assim tão refinada, quase sempre associada a dondocas fúteis e ociosas, talvez a expressão crise existencial pudesse definir o que sentia. A tal crise veio acompanhada dos 50 anos recém-completados e de uma sensação absurdamente palpável de fracasso.
No apartamento modesto e carente de reformas onde vivia em companhia do marido, só ela trazia dinheiro para casa. Fazia dez meses que Nestor se encontrava desempregado. Acomodou-se no discurso fácil de que trabalho está difícil. Não se consegue nada sem uma indicação, ainda mais pra quem já passou dos 50. Foi se enterrando, se encasulando, transformando-se quase numa extensão da própria cama. A situação seria muito pior com crianças ou adolescentes em volta necessitando de coisas que não poderiam ter. Depois de se descobrir infértil, o homem nunca mais foi o mesmo. Sentiu-se diretamente atingido em sua masculinidade, um macho pela metade, defeituoso e precário, e o sexo não mais lhe interessava como antes. Era ele quem sempre estava cansado, com dor de cabeça ou indisposto.
Dois meses após Nestor ter perdido o emprego, Madalena conseguiu uma colocação. Tornou-se um misto de secretária, recepcionista e boy — e o que mais precisasse — no escritório de contabilidade do seu Júlio, um baiano extrovertido e simpático. Estava afastada do mercado de trabalho desde que se casara. A mentalidade tacanha do marido jamais permitiu que sua esposa trabalhasse fora. Mulher minha tem de cuidar da casa e dos filhos. Estes, como se sabe, nunca vieram. O panorama atual forçou Nestor a resignar-se. Não estava mais no controle da situação. Madalena comemorou bastante o fato de ter conseguido o posto. Não sendo especializada em nada, nunca teve muito a oferecer a um possível empregador a não ser disposição para aprender e boa vontade para acertar. Seu Júlio notou isso e resolveu dar-lhe uma chance. Não demorou para que Madalena pegasse o jeito. Em menos de um mês, já se sentia bastante à vontade em seu local de trabalho, e o patrão percebeu o progresso da nova colaboradora. Na verdade, percebeu mais. Tinha a seu lado uma mulher interessante e, se não propriamente bonita, bastante jeitosa, como se costuma dizer. Claro, havia o fato de ser casada, assim como ele. Mas, afinal de contas, nem tudo pode ser perfeito, seria exigir demais da sorte. Assim, o estado civil de ambos não foi empecilho para que o nordestino falastrão começasse a se achegar cada vez mais. Madalena tentou resistir, mas eram tantos mimos, privilégios, presentes e carinhos que ela acabou por se render.
O processo de aceitação de seu comportamento pecaminoso não foi tranquilo. Sentia culpa, nojo e até ódio de si mesma. Julgada e condenada pela própria consciência, ao chegar em casa após o expediente, metia-se embaixo do chuveiro esfregando com uma bucha grossa todo o corpo, como se tal gesto fosse capaz de torná-la de novo uma mulher decente. Buscou ainda apoio na religião e, por sugestão de Juliana, uma amiga dos tempos de escola pública, começou a frequentar uma igreja evangélica perto de casa. A absolvição de suas culpas constituiria tarefa de grande monta.
Nestor, por sua vez, parecia não notar a mudança de comportamento da esposa Também não percebia que a despensa cheia de alimentos caros, as roupas elegantes e os finos objetos adquiridos para o lar do casal — e até mesmo para ele — não eram compatíveis com o salário pago a uma funcionária subalterna de um escritório de contabilidade suburbano.
Com a luz apagada, ainda deitada no sofá, os últimos meses da vida de Madalena passaram por sua cabeça como um filme. Película de quinta categoria, com roteiro sofrível, atores pouco inspirados, direção frouxa, cenário canhestro, montagem tosca e fotografia desbotada, um colossal fracasso de bilheteria que precisava sair logo de cartaz. O sermão proferido pelo pastor na semana passada também não lhe saía da memória. Não estava sendo a mulher santa que edifica o lar. Apesar do relativo conforto material, toda essa situação envolvendo o chefe lhe trazia grande mal-estar. Não entendia igualmente como Nestor podia ter ficado assim tão indiferente, como nunca lhe havia cobrado explicações. Tinha decidido que não valia a pena continuar. Iria naquele momento até o quarto e teria uma conversa franca com o marido. Ainda se julgava capaz disso. Vinte e dois anos de casamento e mais três entre namoro e noivado teriam de significar alguma coisa. Certamente abandonaria o emprego. Não haveria outra saída. Com passos decididos, dirigiu-se ao quarto. Na cama, encontrou o homem lendo um jornal de alguns dias atrás. Afastou o jornal dos olhos dele e disse que precisavam conversar. De um jorro só, contou tudo em detalhes, sem omitir nada. Desabafou e, naquele mesmo instante, sentiu-se aliviada. Nestor ouviu com a apatia costumeira. Ao final do relato, retomou a leitura recém-interrompida e, alguns minutos depois, disse à mulher ao mesmo tempo que desligava o abajur:
– Vamos dormir, é tarde. Amanhã você precisa acordar cedo pra ir trabalhar.
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Eu não sei se já falei isso antes, adoro os finais dos seus contos. Até porque sempre todo o texto é muito bem pensado e trabalhado para o desfecho.