Batman: gibi, série, filme. A arte e o prazer de ler papel ou tela.

Sempre fui a favor de incentivar o gosto pela leitura, sem procupar-se, num primeiro momento, com o gosto erudito em si. Recentemente, escrevi algo nessa linha aqui no ArteCult, dizendo da importância da Literatura, seja ela popular ou erudita, para ajudar os homens na elaboração de suas ideias e sentimentos.

Lá em casa, sempre tivemos regras para presentes. Só em dias especiais, como Natal e aniversário. Tais regras, contudo, não se aplicavam à Literatura de uma forma geral, porque era um contato com o conhecimento. O que se quisesse ler, então, podia ser comprado a qualquer tempo. Livro ou gibi. Revista ou álbum. Foi assim que meu filho, ainda criança, desenvolveu, na época, o hábito semanal de comprar gibis no jornaleiro e de devorar as historinhas do Maurício de Sousa e de alguns super-heróis famosos.

Os gibis, entre outras coisas que fazíamos juntos (ler antes de dormir, livros de banho e com pop-up quando ele era mais novo, por exemplo), semearam uma ideia lúdica da leitura. Mais à frente, mais atento a outros detalhes, meu filho descobriria os mangás e aprenderia a fazer as conexões entre as narrativas dos mangás e as dos “animes” que passavam na TV.

Gibis são verdadeiramente uma porta de entrada para o prazer da leitura. Desenhos, cores, onomatopéias, dose necessária exigida de abstração e mergulho em universos fantasiosos. E nem sempre são infantis. Há muita produção de histórias que carregam traços de suspense e até de violência e transcorrem em ambientes sombrios.

Com a morte recente do ator Adam West, o assunto entrou no meu foco, pensando nas reconstruções do personagem Batman e no imenso sucesso da série de TV.

Como disse recente, num “post” numa rede social, nenhum Batman foi como o Batman de Adam West, o mais famoso, o mais contínuo, a referência mais forte do herói, por causa da série de sucesso dos anos 60. No entanto, sua interpretação é uma referência isolada do personagem original.

Criado em 1939 pela DC Comics, o personagem era sombrio. Um milionário que desenvolveu suas habilidades físicas e investigativas numa reação a um forte trauma sofrido, o de perder seu pai assassinado. Mesmo sendo um homem a serviço do bem, em sua raiz, era taciturno, violento. As histórias em quadrinhos tinham aceitação mas Batman não era o mais popular dos super-heróis. Salvo engano, à frente estava Superman.

Eis que nos anos 60, a série entra no ar e traz um Batman em muito dissociado dessa imagem. A versão mais fiel ao herói criado pela DC Comics perderia força diante do Batman interpretado por Adam West. Apaixonante. Sem noção. Coloridíssimo, no estilo 60″s. A capa preta substituída pela azul petróleo. Sem músculos. Que surfava ao lado de um vilão. Ou dançava iê-iê-iê no meio de um salão. Que tinha senso de humor. Um homem normal, com habilidades especiais, que se punha a serviço da Justiça.

Adoro a essência do personagem original. Adoro o fato de sua origem traumatizada ter feito dele um homem a serviço “do bem”, não se deixando consumir por um simples desejo de vingança. Adoro ele não ter superpoderes, mas inteligência aguçadíssima. E o ar de mistério, a capa/armadura que faz com que a noite o envolva e o esconda, faz com que ele seja, ainda por cima, sexy em vários níveis. Mas, foi a releitura dessa narrativa, foi o Batman de Adam West que me ensinou a amar o personagem para sempre.

Porque Bruce Wayne pulava de terno no corrimão que o deixava na bat-caverna já travestido como herói. Porque ele era “super” mas dançava desengonçado abrindo a capa, tentava misturar-se naturalmente às cenas (mesmo vestido de Batman!), falava gracejos e se dava mal, de vez em quando. Porque desenvolvia raciocínios incríveis com Alfred e Robin. Porque sua luta era mais capa e pulo do que tudo e apareciam escritas na tela as onomatopéias dos quadrinhos e um dia, muito depois da minha infância, brincando de luta com meu filho criança, eu viria a dizer “pow!” como nas lutas da série. Porque ele era bom.

Porque tinha o batmóvel e era o carro mais lindo, tão transado que mesmo menina eu queria um pequenininho de metal. Porque a casa dos seus inimigos era sempre filmada com a câmera inclinada e sempre que vejo algo inclinado por aí, sorrio e digo “parece a casa dos inimigos do Batman”. Porque o telefone com que conversava com o Comissário Gordon era vermelho e, até hoje, quando vejo um, digo “telefone do Batman!”. Porque havia aqueles finais de episódio em que ele e Robin estavam amarrados pra morrer mas o golpe fatal dependia de mil fatores que tinham que dar certo, algo como uma coisa cair e fazer outra coisa derramar, o que faria outra coisa acender, o que faria outra coisa ligar e assim sucessivamente até que algo os mataria e nunca matava porque eles sempre se livravam em tempo. Porque, ao ouvir a música de abertura, a minha lembrança é a da criança que fui e que, na mesma hora, ficava em pé no sofá e pulava quando a série começava. A mesma criança que também pulava, quando ele e Robin começavam a lutar, porque ficava animada e socava o ar de brincadeira. E o bordão de Robin? “Santa ‘alguma coisa’, Batman”, que sequer existia nos gibis e que se perpetuou para além da série, seja nos desenhos de Hanna Barbera ou nas rodas de amigos da vida real. Porque as minhas memórias desse Batman são todas elas afetivas, antes de serem analíticas.

A série dos anos 60 durou dois anos mas ainda passou durante décadas na televisão brasileira. Foi assim que me alcançou. E quanto mais eu penso nisso, mais fica claro que o Batman de Adam West virou “o” Batman no nosso imaginário porque nossa relação com ele era de puro encantamento, de deleite, de alegria. É nesse contato que a arte seduz nosso olhar primeiro. Criança que era, a série dialogou direto comigo, enchendo minhas retinas de cores e me fazendo reconhecer as suaves doses de humor dos diálogos.

Somente muitas décadas depois, o cinema se preocuparia em fazer uma releitura do personagem, que seria mais fiel ao original. Ainda assim, seus diversos intérpretes dividiriam a opinião dos espectadores, revelando um aspecto muito interessante: se o personagem possui a aceitação do público, a postura crítica em relação a quem dá vida ao personagem é constante. O que, em menor grau, aconteceu a Adam West, celebrado até o fim de sua vida como o “verdadeiro” Batman, tanto que numa homenagem ao ator se projetou um bat-sinal num prédio de Los Angeles.

Adam West não era o Batman, apenas um entre seus vários intérpretes. O seu Batman não foi o mais fiel ao criado originalmente . Ainda assim, seu jeito próprio de criá-lo imprimiu em nós uma referência única. Sua interpretação evidencia que um texto pode possuir várias camadas interpretativas.

Foram muitas entre os gibis dos anos 40, a série dos anos 60, a filmografia que existe até os dias atuais e os gibis de agora. Com ele, contudo, ficou estabelecido que íamos nos relacionar com o personagem de uma forma amorosa, lúdica e aventureira. Por isso, com sua partida, morre um pouco o Batman também e a criança que um dia fomos e um pedaço daquela felicidade que sentimos.

 

 

CURIOSIDADES:

Duas curiosidades para os fãs de Batman, a série, como eu.

  1.  A lista de curiosidades sobre a série, publicadas no site “Omelete”:
    https://omelete.uol.com.br/series-tv/artigo/batman-18-coisas-que-voce-nao-sabia-sobre-a-serie-de-66/339789/

  2. A deliciosa participação de Adam West em “The Big Bang Theory”, em que o ator é levado de presente de aniversário ao personagem Sheldon e brinca com o Batman que foi e com os que vieram depois dele:

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, aqui no ArteCult, há texto novo da autora. Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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