Aqui em frente, não tinha prédio. Era uma pedreira. Com um morro por onde, na imaginação das crianças, descia uma mulher nua, com cobras no pescoço, na alta madrugada. Ninguém era bobo de checar se era verdade. A população da região cresceu, fizeram esse condomínio. Bacana. Com piscina. A meninada daí nem sai mais à rua pra brincar.
Naquela guarita, era um ponto de ônibus. Nossa, foi tanto abaixo-assinado pra não ter barulho na porta, pra não engarrafar a rua, pra não ter falação de motorista e trocador tarde da noite… Até me cansava o assunto de tirar o ponto dali. Mas não foram os apelos que mandaram os ônibus embora, não; foram os assaltos. Muito prejuízo pra empresa. Um trocador foi baleado por não entregar um maço de troco.
Na esquina, onde fica a padaria, era um prédio abandonado. Dava pena ver o tempo devorar a madeira das janelas. Invadiam o lugar para cheirar crack. Chamaram a polícia. Confusão. Foi bom inaugurarem esse comércio. Quando eu era menino, Doralice morava ali. Chegava da escola com a boca avermelhada e um laço de fita prendendo o rabo de cavalo no alto da cabeça. Eu saía com o cachorro e arrodeava o poste em frente a sua janela, na esperança de que ela me visse. Menino tem dessas bobagens.
Vê a van do churrasquinho, ao lado? Era a banca do Seu Agenor, onde a criançada pegava gibis. Os pais passavam no sábado para fechar a conta e sempre davam bronca quando o filho abusava de comprar pacote de figurinha. Na Copa, você sabe, todo mundo quer completar o álbum antes do fim da competição. E jogar bafo com as repetidas. Seu Agenor ficou velhinho, o filho abandonou tudo aí. Dividiram as revistas deixadas pra trás. Mas era tudo notícia velha, moda de outra estação. O Arlindo levou os jornais pra lojinha dos bichos – pet shop, né? – para forrar as gaiolas. Eu trouxe meia dúzia de palavras cruzadas. Gosto muito. Lá em casa, os meninos só querem saber de videogame. Vai perguntar “propriedade de uma pessoa; 3 letras”, pra ver se falam “bem”. Aposto que erram.
E os postes enfeitados de bandeirinhas no São João, no mundial de futebol? A meninada pintando, ajoelhada, a rua. O Renato punha a televisão na varanda, pra todo mundo assistir aos jogos juntos. Do lado de fora! Dentro de casa, não queria gente com cerveja nem fala alterada. Era bom demais! A rua virava uma família, ninguém tinha medo de assalto.
A rua era outra. O povo, diferente. Eu era mais feliz. Falam que a gente sempre pensa que o passado é melhor. Que é ilusão. Sei não, seu moço, bem que eu queria morar na rua da minha ilusão. Tanto que o peito dói.
Aliás, viu que abriram um ambulatório onde era a quadra da escola de samba? Inaugura na terça. Parece que o prefeito vem.
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com César Manzolillo