A peste, o silêncio, o luto, a humanidade em xeque. A esperança do ritmo desacelerar. Os homens obrigados a ressignificarem prioridades, relações. Tudo iria mudar.
Não mudou. Ela estava, à beira da madrugada, finalizando um trabalho, como antes. “Você tem que entregar no prazo”. “Você tem que rever os relatórios da equipe”. Outros problemas rondando sua cabeça. “Você tem que resolver os atritos”. “Você tem que amenizar a frustração do chefe com o resultado”. Culpada por negligenciar a vida pessoal. “Você tem que achar tempo para pegar as crianças na escola”. “Você tem que me ajudar com o dever, mãe”.
Empilhavam-se mensagens no celular. Perdia-se em orientações aos colegas. Atendia clientes. Sanava dúvidas. Encaminhava projetos. Mandava emojis e corações para as crianças, abrandando a ausência. “Você tem que passar confiança aos clientes”. Sempre trazia um sorriso no rosto. Simpática com o público. Educada no ambiente de trabalho. As olheiras cobertas por corretivo. Uma maquiagem discreta. Os cabelos presos para não exigirem atenção na correria do dia. “Você tem que estar arrumada; você é a imagem da empresa”. Ela trocava almoço por sanduíche, happy hour por serão, passeio na manhã de domingo por descanso.
Sua rotina não perdeu a pressa. O mundo, enfermo, não freou a marcha. “Você tem, você tem, você tem…” O incômodo maior diante da consciência de que se vivia errado. Amanheceu doente. Não conseguiu fazer seu trabalho. Precisou isolar-se e, mesmo assim, sua família adoeceu, junto. Curaram-se, aninhados na mesma cama, envolvidos em afeto e esperança, uns poucos remédios existentes.
Voltou ao escritório festejada pelos colegas. Os cabelos soltos porque, agora, deixava que as crianças que lhe desgrenhassem na porta da escola, num último abraço. A maquiagem mais viva, os olhos destacados, sempre pronta para depois. Os horários marcados: pausa para almoço e para café com os colegas. “Você tem que dar atenção aos clientes”. Passou a segurar suas mãos e ouvir suas histórias e, de vez em quando, seus olhos se enchiam de lágrimas com as perdas divididas. Eram dias tristes, embora o tempo não parasse. “Você tem que dar conta do acúmulo na sua ausência”. Passou a marcar no relógio a hora de saída para sair. Antes de voltar a casa, passou a abrir espaço para um drinque, um affair ou uma sessão de cinema. Ela tem que dar conta de si, do que há além das divisórias: uma vida não só de obrigações mas, também, de desejos.
O mundo não mudou. Ela, sim.