Se for possível viajar no tempo, não quero máquina para ir ao futuro. Estou esgotada de futuros. As inteligências artificiais criam décadas de um dia para o outro, o cinema projeta futuros improváveis desde minha infância. Estive sempre à espera de um amanhã misterioso: o bug do milênio, a guerra nuclear, o contato com extraterrenos, as viagens ao espaço por cidadãos comuns, a vida automatizada, os amores algoritmados, os robôs a nos satisfazerem, a transcendência através do transumanismo.
Coisas se realizaram, outras não, algumas estão por vir. E continuamos olhando para frente. Pensando nos valores morais a serem preservados no ambiente virtual, garantindo que sobreviva ao tempo a boa comunicação, o espaço do diálogo, e não do ódio, porque, no presente, o futuro fracassou.
Estou farta do porvir, para onde se aponta em estado de alerta. Um mundo que precisará do cuidado dos que insistem em tentar explicar a paz ser mais importante do que as guerras. Desde as pequenas, travadas através de posts, às grandes, através de bombardeios de avião.
Se tivesse uma máquina do tempo, visitaria o passado. Se há, lá, lembranças boas e ruins, como no percurso de toda a vida, existe a pessoa melhor que pude ser e para onde jamais poderei voltar, com os olhos livres de referências sombrias, o peito cheio de certezas esperançosas, a alegria involuntária por ter o corpo funcionando bem, uma casa que me abrigava e amor suficiente para alimentar-me.
Recuperaria o cheiro da casa antiga, bom e doce, que não reconheço em canto algum. Caminharia sobre a areia úmida, à beira de onde as ondas conseguem chegar. Deixaria um pouco da areia ceder, escapar, ceder, sem medo de que, embaixo, o solo não fosse firme para continuar a caminhada.
Encontrando os que me criaram, em seus braços me aninharia, num fim de tarde. Esperaríamos as noites caírem na varanda, sem precisar contar dias a menos de infância. O acalanto seria para o amanhecer uma garantia. Quando, anos depois, nos alcançasse a malícia dos homens, saberia, por ter voltado do futuro a esse momento, que minha força se guardou nesse ninho.
Dali, pularia para os anos à frente que, ainda assim, são, hoje, passado. Por eles, meu filho correria em zigue-zague, menino, estourando estalinhos no chão das ruas do bairro. Teria sorrisos fáceis, sono longo e eu serenaria ao fim de cada dia abraçada a ele, não importasse a chuva, o problema, a incerteza. O cheiro viciante da pele da cria me esperançaria sobre o futuro. E quando, num futuro em que eu não mais estiver, ele lembrar-se de mim, não serão os conselhos e os ensinamentos que soprei nos seus ouvidos, mas a textura desse nosso trançado a marcar-lhe como proteção à alma.
Se o amanhã me reserva surpresas boas, reverencio no passado os acontecimentos iluminadores dessa trajetória. Se me coubesse voar no espaço-tempo, escolheria a contramão: ontem, onde os dias são reais e o amor já me foi garantido.
Confira as colunas do Projeto AC Verso & Prosa:
com César Manzolillo
Beleza de texto, lúcido e lírico. Parabéns!
Que lindo poema, digo, crônica. rs. Vai inspirar uma letra de música!
Me identifiquei totalmente com a crônica de hoje. Também gostaria que a máquina do tempo me levasse ao passado. Como tenho saudades!
Tanussi, Raphael e Natália, seus comentários me honram. Muito obrigada pela leitura e devolutiva carinhosa. Beijos em todos!