ÀS QUARTAS – Máquina do tempo

Foto: Charlie Woolborg, em Unsplash

Se for possível viajar no tempo, não quero máquina para ir ao futuro. Estou esgotada de futuros. As inteligências artificiais criam décadas de um dia para o outro, o cinema projeta futuros improváveis desde minha infância. Estive sempre à espera de um amanhã misterioso: o bug do milênio, a guerra nuclear, o contato com extraterrenos, as viagens ao espaço por cidadãos comuns, a vida automatizada, os amores algoritmados, os robôs a nos satisfazerem, a transcendência através do transumanismo.

Coisas se realizaram, outras não, algumas estão por vir. E continuamos olhando para frente. Pensando nos valores morais a serem preservados no ambiente virtual, garantindo que sobreviva ao tempo a boa comunicação, o espaço do diálogo, e não do ódio, porque, no presente, o futuro fracassou.

Estou farta do porvir, para onde se aponta em estado de alerta. Um mundo que precisará do cuidado dos que insistem em tentar explicar a paz ser mais importante do que as guerras. Desde as pequenas, travadas através de posts, às grandes, através de bombardeios de avião.

Se tivesse uma máquina do tempo, visitaria o passado. Se há, lá, lembranças boas e ruins, como no percurso de toda a vida, existe a pessoa melhor que pude ser e para onde jamais poderei voltar, com os olhos livres de referências sombrias, o peito cheio de certezas esperançosas, a alegria involuntária por ter o corpo funcionando bem, uma casa que me abrigava e amor suficiente para alimentar-me.

Recuperaria o cheiro da casa antiga, bom e doce, que não reconheço em canto algum. Caminharia sobre a areia úmida, à beira de onde as ondas conseguem chegar. Deixaria um pouco da areia ceder, escapar, ceder, sem medo de que, embaixo, o solo não fosse firme para continuar a caminhada.

Encontrando os que me criaram, em seus braços me aninharia, num fim de tarde. Esperaríamos as noites caírem na varanda, sem precisar contar dias a menos de infância. O acalanto seria para o amanhecer uma garantia. Quando, anos depois, nos alcançasse a malícia dos homens, saberia, por ter voltado do futuro a esse momento, que minha força se guardou nesse ninho.

Foto: SpaceX, em Unsplash

Dali, pularia para os anos à frente que, ainda assim, são, hoje, passado. Por eles, meu filho correria em zigue-zague, menino, estourando estalinhos no chão das ruas do bairro. Teria sorrisos fáceis, sono longo e eu serenaria ao fim de cada dia abraçada a ele, não importasse a chuva, o problema, a incerteza. O cheiro viciante da pele da cria me esperançaria sobre o futuro. E quando, num futuro em que eu não mais estiver, ele lembrar-se de mim, não serão os conselhos e os ensinamentos que soprei nos seus ouvidos, mas a textura desse nosso trançado a marcar-lhe como proteção à alma.

Se o amanhã me reserva surpresas boas, reverencio no passado os acontecimentos iluminadores dessa trajetória. Se me coubesse voar no espaço-tempo, escolheria a contramão: ontem, onde os dias são reais e o amor já me foi garantido.

ANA LÚCIA GOSLING

Ana Lucia Gosling (@analugosling)

 

 

 

 

 

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Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, no ArteCult, há crônica nova da autora, que integra o projeto AC VERSO & PROSA junto de Tanussi Cardoso (poemas) e César Manzolillo (contos). Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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