Às quartas – Maquiagem

Foto: Freestocks, em Unsplash

É na primeira hora da manhã que meu equilíbrio mais se arrisca.

Saída do banho, ainda inchada de sono, passo um algodão umedecido em loção no rosto e desperto para os detalhes da fisionomia, antes de desenhar a maquiagem sobre a pele.

Observo a imagem refletida no espelho do banheiro, levemente turva por causa dos vapores de calor no ar. Deslizo o algodão sobre pequenas rugas no canto dos olhos e sobre as linhas marcadas na testa. Noto alguns detalhes alterados mas, como ninguém os comentou, imagino-me, ainda, protegida de um diagnóstico definitivo. Afinal, ninguém se aproxima tanto de mim quanto eu do meu reflexo na hora de maquiar-me.

Todas as manhãs, o compromisso de estudar esses pequenos sinais, disfarçando as olheiras, delineando as pálpebras, colorindo o rosto. Enquanto disfarço imperfeições com uma base, crio a ilusão de uma nova casca sobre a antiga. Como uma máscara sobre o próprio molde, que não se pareça máscara mas bela e crua naturalidade.

Passo um creme pelo corpo. Algum vigor já se perdeu. Meu olhar atento e curioso disfarça os sinais mas não altera a marcha diária do tempo. Temo, por um instante, um dia, não reconhecer-me na imagem espelhada.

Respiro. Não perdi a beleza. Não envelheci de fato. Não temo a solidão que, dizem, acompanha o apagar físico. Penso: a mente manterá acesa a alma, quando o corpo esmorecer.

Foto: Vladimir Fedotov, em Unsplash

Ainda assim, preciso fortalecer-me todas as manhãs. No ambiente agora desembaçado, vejo além do espelho. Enxergo sob meus traços os projetos ainda não realizados. A vida além da minha capacidade de vivê-la. A rotina dos dias esmagando os sonhos adiados. Sinto ter menos tempo de agora em diante, não só porque há limites de anos para viver-se, mas porque caminho em passos cada vez mais lentos.

Respiro profundamente. Estico os cantos do rosto e viro-me, verificando os acertos da maquiagem. Apago a luz do banheiro.

Mergulho nas decisões mais fáceis. Escolho um vestido marcado na cintura, com um decote valorizando, sutilmente, meus seios. No espelho do armário, um pouco mais afastada da minha imagem, vejo-me inteira. Aprovo o caimento da roupa, ajeito o tecido contra os quadris e decido, por fim, se prendo ou solto os cabelos.

Saio. Envolvo-me em obrigações e em risadas rotineiras. Esqueço, por completo, a ansiedade da manhã. No fim do dia, limpo a pele, distraída pela cena da novela. Durmo, após desligar a tevê. Enquanto o despertador não toca, o dia seguinte não começa e não reinicio o pequeno ritual das manhãs, minha mente repousa tranquila.

 

ANA LÚCIA GOSLING

Ana Lucia Gosling (@analugosling)

 

 

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, aqui no ArteCult, há texto novo da autora. Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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