Às Quartas – Invisível

Com Ana Lúcia Gosling

 

Foto: Vitaliy Schevchenko, em Unsplash

 

Cheguei com a amiga, pra não entrar sozinha. Os garotos da escola logo a convidaram para jogar dados. Ela me levou. Era o combinado: ninguém solta a mão de ninguém. Ela ria da espuma do chope na ponta do nariz. Do dardo ter parado distante do alvo. Quando um rapaz a chamou de maluquinha, riu, com o corpo inteiro.

Pra ela era fácil. Eu estava em terreno desconhecido. Esbocei um sorriso, com medo de ser zoada por não achar legal bebidas alcoólicas. Levei a sério o momento de lançar o dardo, como se fosse etapa pra garantir um próximo convite. Errei. Não seria a única abstêmica. Aceitei um chope.

Mastiguei umas fritas e biquei a bebida, disfarçando a falta de assunto. Primeira festa sem videogame. Com DJ, luzes e pista de dança. O pessoal resolveu dançar. Me puxaram pro centro da roda. Bati os pés no tempo certo; um alívio. Puxei a minissaia pra baixo. Medo de aparecer a calcinha, a falta de jeito, o embaraço. Virar um meme. Abaixei o olhar. Minha cintura é muito dura? Encarei os meninos, num instante, buscando a resposta.

Cauã, distraído de mim, buscava outro canto do salão. Me olha; danço pra você. Me acha desengonçada? O vestido colado acentua minha barriga? Largou o grupo e foi cumprimentar outras garotas. Todas parecidas: roupas, cabelos, unhas. Ficou lá, arriscando passos, colado ao rosto de uma delas. Magra. Cacheada. Vestido de marca. Perfeito nela, esguia, pouco busto, o decote maior.

Me afastei e peguei um refrigerante. Minha amiga trocou selinhos com um menino mas deu a mão a outro. Fingi responder mensagens, observando Cauã. E se eu cacheasse os cabelos? Se me vestisse como ela? Se emagrecesse? Você me amaria?

A pista esvaziou. Eu, invisível. Uma nova rodada de dardos começou sem mim. Minha amiga arranjou um ficante. Cauã deu o primeiro beijo na modelo. Segurei o choro, mexendo a cabeça ao som da música. O celular me ancorou. Nos stories, já havia vídeos da festa: zoeiras, sorrisos, novos casais. Nada meu. Mas não ser notada era melhor do que pagar mico.

Era madrugada quando ouvi o toque no aparelho. A amiga me marcara numa foto: sorríamos, abraçadas aos rapazes. Pareci divertida. Rolando a tela, um vídeo meu, dançando, tímida mas dando conta. O corpo livre, os gestos naturais. Com efeitos: a imagem se aproximava e fugia, fazendo parecer mais animado do que foi.

Não me reconheci, me vendo de fora: o corpo ok, boa postura, os cabelos soltos. A amiga pôs “Maravilhosa!” na legenda. Digitei: “BFF”. Havia curtidas. Cauã deixou foguinhos nos comentários ao reels. Dormi sorrindo. Pra “lindaaa!” parece faltar pouco.

 

ANA LUCIA GOSLING

@analugosling

 

 

 

DICA DA SEMANA:

 

Foto: Divulgação TRT/RJ

O Centro Cultural do TRT/RJ, em parceria com o Subcomitê de Equidade de Raça do TRT/RJ, Gênero e Diversidade e a OAB/RJ, promoverá a apresentação da peça “Luiz Gama – Uma voz pela liberdade” que será encenada pelo ator Deo Garcez, no próximo dia 26, às 13 horas, no espaço do Centro Cultural.

A apresentação é aberta ao público externo e gratuita.

Durante o evento, ocorrerá, também, uma feira de empreendedores negros no hall de entrada do prédio.

SERVIÇO:

“Luiz Gama – Uma voz pela liberdade”

Dia e horário: 26/11/2025, às 13h

Local: Centro Cultural do TRT do Rio de Janeiro

Av. Presidente Antônio Carlos 251, térreo (entrada também pela Rua da Imprensa)

Entrada gratuita.

FICHA TÉCNICA:

Produtor: Olhos d’Água Produções Artísticas e Gama Produção
Direção: Ricardo Torres
Elenco: Deo Garcez e Soraia Arnoni

A peça é baseada na vida e obra de Luiz Gama, um importante abolicionista e advogado brasileiro do século XIX, destacando seus escritos, suas defesas jurídicas em favor de pessoas escravizadas e seus poemas satíricos.

 

 

 

Confira as colunas do Projeto AC Verso & Prosa:


com Ana Lúcia Gosling

com César Manzolillo


com Tanussi Cardoso

 

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, no ArteCult, há crônica nova da autora, que integra o projeto AC VERSO & PROSA junto de Tanussi Cardoso (poemas) e César Manzolillo (contos). Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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