Em 2020, numa oficina de escrita criativa com o ótimo Luiz Antonio Aguiar, numa das dinâmicas propostas, meu texto foi sobre um poeta interagindo com Machado de Assis. Uma crônica do autor surgira como mote na aula. O professor, admirador do Mestre. Eu, dos dois.
Na ocasião, era pandemia e chegamos a realizar uma live sobre o escritor para o ArteCult, unidos por esse interesse em comum. Uma honra para esta amadora.
Meu texto era breve, quase um rascunho. Mas senti alegria ao encontrá-lo nesta semana em que me dei de presente a coleção de livros do escritor. Num encaixe provisório na estante da sala, até que eu, finalmente, arrume os livros nos meus armários, me cobram diariamente a leitura dos volumes que me faltaram vida afora.
Ainda me surpreende a atualidade do escritor, as sutilezas com que descortinava a hipocrisia social e mesmo as individuais, íntimas, recolhidas sob os véus do recato da época. Ainda sorrio para sua sagacidade e sua crítica corrosiva. E me deleito com o uso faceiro e espontâneo da língua que nos soa antiga e cultíssima.
Os iniciados sabem por que amam Machado. Como ensinar as novas gerações a amá-lo também? Por que, muitas vezes, as escolas o apresentam como tarefa árdua a ser desenvolvida? Há tantas conexões que poderiam ser feitas a partir de sua contemporaneidade. Por que não suas crônicas antes do trajeto por um romance denso, escrito em “outra língua”?
Contei esta história na live: quando li Dom Casmurro, o professor propôs a divisão da turma em advogados de defesa e de acusação de Capitu. Durante a leitura do romance, fomos entendendo que nada era tão certo que não pudesse ser contestado. Ele encontrou, assim, um jeito de tornar mais divertida a experiência de conhecer Machado, além de apontar para a genialidade estrutural do romance.
Foi como me apaixonei, à primeira lida, pelo escritor. Dali, pulei para a melancolia de Quincas Borba. Afinal, qual adolescente não é, vocacionalmente, melancólico e crítico?
O texto que escrevi para a oficina está abaixo:
Corações que a poesia não alcança
Sento ao lado do homem, achando ser Joaquim Maria, amigo das letras e dos copos divididos nas tardes de críticas ao Governo. Precipito-me: “Por mais breve a vida seja/por mais alta a lua brilhe/vale o que vil ministro verseja/ainda que tudo descarrilhe”.
Tiro do bolso o papel com meu último poema escrito e só então percebo: não é Joaquim. O homem me olha, sério. Preciso justificar a intimidade súbita mas não quero explicar o equívoco. “Gosta de poesia? Este é meu melhor poema. É de amor!”. Leio pausadamente os versos escritos para Carolina, antes que ela confessasse seu amor por Joaquim. O amigo teria percebido que os escrevi para ela?
O homem está entediado. Cochila na segunda estrofe, a confissão do meu desejo. Abre os olhos no verso final, em que choro a interdição do meu amor.
– Continue, diz o homem.
– Já acabei, respondo.
– São muito bonitos.
Ele mente. Nada o sensibilizou. Nem a poesia, nem as estrofes cuidadosamente ritmadas, nem o amor, nem minha dor. Ensaio tirar o escrito do bolso numa nova tentativa. Mas ele ainda luta contra o peso dos olhos, entediado pela dor alheia. Está fechado em si, não há fresta por onde passe o lirismo. Desisto. Do casmurro, de Carolina, da amizade que não posso trair. Menos da poesia, trilho sobre o qual me sustento, de estação a estação.
Não é gostoso imaginar-se poeta, sentado ao lado do Mestre (na imaginação, meio o escritor, meio o personagem casmurro), sendo capaz de sentir pulsar tanto amor? Ah, a escrita pode nos levar a qualquer lugar…
- Quem quiser assistir à live, em que o professor Luiz Antônio Aguiar compartilha vários conhecimentos sobre Machado de Assis, ela está no nosso canal no Youtube, neste link: https://www.youtube.com/watch?v=EBov8k0A7j8 .
- Também temos no nosso acervo do AC Encontros Literários uma entrevista com o professor falando de sua própria (e vasta) obra, no link: https://www.youtube.com/watch?v=6wbY545XCQo
Confira as colunas do Projeto AC Verso & Prosa:
com César Manzolillo