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Caí nas graças de algum espírito gozador.
Primeiro, o agosto de acúmulos. O lançamento do livro, em novembro, veio para 24 de agosto. A participação num programa em junho, exibida em 25 de agosto. A inspeção do trabalho, em julho, adiada para o dia 26. Tudo num mesmo fim de semana, uma semana antes do meu embarque para a Turquia.
Ao viajar, há sempre um obstáculo necessário de ser transposto por mim: o medo de avião. Décadas de viagem e um ex-marido engenheiro mecânico, trabalhando com manutenção de motores de avião, tornaram menos inseguras minhas pré-decolagens. Passo por calma, se puxam assunto comigo.
Mas o tal gozador não se esqueceu de mim. Apossou-se do taxista que me levou ao aeroporto e pos-se a contar da sua última aterrisagem no Santos Dumont. Emocionante, disse. De onde vinha a emoção? Do avião quase ter parado nas pedras da Baía de Guanabara. “A pista é curta, a senhora sabe, né?”. Sei e agradeço, em silêncio, estar indo para o Galeão. Ele continua se achando um excelente contador de histórias sobre turbulência e riscos a que se sobreviveu. “Avião é, mesmo, um troço muito seguro”, diagnostica, por experiência pessoal. Desço da minha altivez, depois de tantas arremetidas em suas narrativas: “Moço, desculpe, mas essa não é uma boa hora pra termos essa conversa. Tenho medo de avião”. Pede desculpas, fica sério, perdi o amigo que ele achava que éramos.
Embarque tranquilo. Mas a traquinagem do Além não me abandonou. Bastou o avião correr até a cabeceira da pista que, da cadeira traseira, uma voz feminina inicia, em voz alta, uma sequência de orações. Ave-Maria, várias, Pai-Nosso, Salve Rainha, Credo, mais Ave-Maria… A mulher reza o terço para si e para todos os passageiros num raio de duas fileiras à frente e atrás dela. Ao fim, canta um hino católico. Procuro por câmeras no teto; só pode ser uma dessas pegadinhas de tevê.
Já tinha feito as minhas orações. Já tinha afogado a tensão da decolagem, selecionando os filmes a serem vistos de madrugada. Mas alguém necessitada de tamanha proteção me sugere que, talvez, eu esteja preocupada de menos. Anos de confiança construída se esfarelam quando pegamos uma turbulência. Cerro os olhos, elevo os pensamentos a Deus, e aperto a mão da passageira a meu lado, sem intimidade para tanto. “É só uma nuvem”, me diz, calmamente, para que eu pare de esmagar seus dedos.
Morro de vergonha. Mas ela há de convir: são muitos elementos para alimentar minha paranóia. Rimos juntas até que ela começa a contar quando o filho, criança, se pôs a fazer perguntas sobre desastre aéreo dentro do avião. A memória divertida para ela me confronta com uma série de questionamentos que não quero fazer, principalmente no ar. O amigo do outro lado se lembra de uma história pessoal, de quando enfrentando uma tempestade de gelo, o avião em que estava teria desligado os motores.
Jogo o autocontrole no chão. “Pessoal, essa não é uma boa hora pra essa conversa”. Fico em pé no corredor, sob o pretexto de esticar a coluna. Caminho para longe. Não quero reza, nem boa crônica sobre aventuras no ar.
De volta ao plano inicial. Assistiria a “Um lugar chamado Nothing Hill”, como planejara. Assim que verificasse, pela janela, se havia gelo nas hélices. (Se ao menos desse para eu ver as hélices…tsc).


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com César Manzolillo













