ÀS QUARTAS – Despedida

Foto: Gonzalo Pedroviejo Gomez, em Unsplash

 

Eu me lembro do momento exato em que fui criança pela última vez: quando precisei seguir sem você. Um mar se desenhou entre nós, separando-nos. Você, além de onde eu poderia estar. Eu, percebendo seu vulto se dissipando, distante.

Minhas mãos repousaram sobre as suas nos últimos instantes. Minhas mãos seguravam as suas até desenhar-se entre nós uma divisória imaginária. Você escorregou de mim e desse lugar. Deixou o barco abandonar o cais. Seu calor ficou. Até eu perceber, você já longe, a anestesia dos dedos e o esfriamento da pele. Uma constatação súbita para quem se negou a notar que você me deixava devagar. Primeiro, a mente. Depois, o coração. Agora, o espírito. 

Era eu quem navegava. Era eu obrigada a seguir. Eu, lançada a uma vida além daquele momento, olhando seu sorriso desaparecendo, sua imagem se perdendo nas lembranças deixadas para trás. Tentando recuperá-lo nas fotos, nos textos, sem nunca mais ser capaz de sentí-lo. Nem os cheiros, nem o calor, nem a textura. 

A última vez em que fui criança, eu já era adulta. Mas voltei a ser pequena, sem saber comportar-me. Querendo um abraço, quando não era mais possível. Muda. O adeus sacramentaria a despedida. Embora soubesse haver chegado a hora, ressuscitei uma fé infantil: a mágica do tempo congelaria, o dia amanheceria e venceríamos a madrugada. Ficaríamos ali, quietos, presos no momento. Seríamos sempre nós dois, o nosso amor, um cuidando do outro; seu colo para mim, minha força para você. 

Foto: Frank Holleman, em Unsplash

Quando a realidade nos abraçou, fiquei sendo só essa parte esvaziada de mim: a que sente dor e solidão, a que caminha procurando sentidos. Sem colo nem consolo dos pais. Sem me chamarem pelo apelido de infância. Sem ninguém sentir tão sinceramente minha ausência ou procurar por mim se eu não chegar. Sempre acham que chegarei. Só você tinha medo de eu perder a direção. Só você perdoaria os meus pecados amorosamente.

Costumo espreitar os navios chegando no cais, na esperança de você ou alguém embarcarem a criança que fui e deixei no porto, quando nos despedimos. Conto com ela para ensinar-me, de novo, a sorrir e a contar estrelas no céu, como aprendeu com você. Qualquer dia desses, ela precisa achar o caminho de casa.

 

 

 

ANA LÚCIA GOSLING

Ana Lucia Gosling (@analugosling)

 

 

 

 

 

 

 

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Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, no ArteCult, há crônica nova da autora, que integra o projeto AC VERSO & PROSA junto de Tanussi Cardoso (poemas) e César Manzolillo (contos). Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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