Às quartas – De joelhos

Foto: 5thway Vietnam, em Unsplash

 

Abdômem, bíceps, coxa, você malha. Mas joelho, não, né?  Ele é como uma presença inconveniente e obrigatória nas festas. Não tem assunto, não protagoniza histórias de bravura. “Me carregou nos braços”! “Meu coração é seu”! Mas… se o neném é feio, tem “cara de joelho”. Se alguém fracassa ou se rende, “caiu de joelhos”.

Ele é importante, a maior articulação do corpo. Se ignorar isso, ele encontrará um jeito de ensiná-lo. Espreita brechas para sair do ostracismo. “Vai me maltratando, vai, para você ver…”

No sapateado, aprende-se a dançar com os joelhos flexionados. O segredo é revelado logo na primeira aula. Saiba, marombeiro: se não dobrar os joelhos, você é nada.

Eu e os meus nos dávamos bem. Até eu cair de um quadriciclo e bater o direito no chão. No momento de dor, ao invés de mimá-lo com gelo e pomada, fui arrogante. Cheguei dando decisão: “Não falha, cara! Estamos viajando, não me arranja problema!”.

Ele entubou a exigência. Pude andar, subir e descer montanhas. Achando que tínhamos um acordo, poupei esforços ao direito, sobrecarreguei o esquerdo, redividi as tarefas. Enquanto isso, ele ruminava uma vingança.

Semanas depois, noutra viagem, o joelho direito se revelou um “transformer”.  Assumiu a forma de uma bola de tênis, depois, a de beisebol. Curvei-me, sem conseguir ajoelhar-me. Pedi que esperasse voltarmos para casa. Prometi médico, pão-de-ló e cocada. Apelei: estávamos na Grécia, eu não falava grego, como poderia exigir tudo necessário para seu conforto? Ele aceitou o argumento mas ficou falhando, vez ou outra, para reavivar a promessa.

Quis um simples raio-X, ele me exigiu um “book” nuclear. Parte da revanche foi submeter-me a uma ressonância magnética. Exibiu-se em vários ângulos: tendão lesionado, bursite, líquidos e sangue acumulados. Edema importante. Ficou se achando.

O plano deu certo: ele assumiu o protagonismo de todas as histórias. Nunca mais ocupou o canto da festa. Só se fala dele. “Tudo bem” virou “como está seu joelho”. Nem corações partidos importam.

– Ele disse que ligaria, não ligou.

– Melhor assim.

– Meu coração merece um descanso?

– O joelho! Quieta, em casa, você descansa o joelho.

Está vivendo seu auge. Abraços de bolsa quente, pernas para o alto, acupuntura, fisioterapia, choques leves. Amargo seus caprichos. Nada de dança, Bienal nem pensar, vetada longa caminhada. Peguei engarrafamento e ele me fisgou a noite inteira, me lembrando de que não devia dirigir.

Malcriado, ele. Muito malcriado.

 

ANA LÚCIA GOSLING

Ana Lucia Gosling (@analugosling)

 

 

 

 

 

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, no ArteCult, há crônica nova da autora, que integra o projeto AC VERSO & PROSA junto de Tanussi Cardoso (poemas) e César Manzolillo (contos). Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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