Com Ana Lúcia Gosling
Desperto, ainda noite. Vislumbro o céu negro no alto do horizonte, através da janela rasgada pelas gotas de chuva. Os relâmpagos clareiam o relógio à cabeceira: quatro horas. Projetam a sombra da cortina contra o teto branco.
Houve estrelas ali, adesivadas. Em toda a extensão, formavam a Via Láctea na direção da porta. Espaçadas, próximas aos cantos, juntavam-se em maior número sobre a cama. Fluorescentes, distinguiam-se, intensas, ao apagarem-se as luzes. Perdiam, lentas, o brilho, antes de meu sono chegar. Desenhara, dia a dia, a minha galáxia, sozinha, colando minúsculas bolas estelares e, de vez em quando, um planeta gordo.
Já me deitei sob esse céu, com a guitarra de Dylan ao fundo e o corpo quente de espera. Os seios roçando em seu peito, no abraço que nos colou. E era amor. O primeiro. Que não adivinha nuvem nem tempestade, apenas cintila.
De quem fora a ideia de cobrir de tinta o que, antes, fora o universo?
Às quatro horas, as décadas passadas evaporaram da minha lembrança. Era ontem, eu, com você, flutuando no espaço. Hoje, nós, atravessando o vazio e a negritude da noite. A rapidez com que se alternavam, diante de mim, o passado e o presente me inquietou. Saí para caminhar.
A chuva dera uma trégua. As gotas magras não me convenceram a vestir a capa. As poças nada espelhavam em seus lagos pretos. Não se via a lua; os postes estavam distantes. Acendi um cigarro, procurando nas árvores os primeiros movimentos dos pássaros que, sabia, àquela hora já zanzavam. Nada. Todos abrigados.
Voltei para abrigar-me também, debaixo do edredom desbotado, em silêncio. No quarto da frente, o amor dormia. Minha palma sobre sua testa fresca, aferindo perigos. Sussurrei: “lembra-se quando acampamos sob Saturno”? Meus dedos, correndo sua pele fina, deixaram estrelas em seus cabelos.
Seu coração apitava em tons baixos. No início, eu dormia à cabeceira, não cessando a vigília. O cansaço me exigiu descanso no quarto ao lado, esvaziado de juventude. O som ampliado da respiração dizia se, aqui, a vida pulsava. A parede nos separando me oprimia.
Culpei o vento por agitar-me o sono. A tempestade, pelo sobressalto. A escuridão pela tristeza. Por que tanta angústia à iminência da manhã? Por que o céu se recolhe tendo parado a chuva?
O longo suspiro, dilatando a sanfona de ar. A retração súbita. O agudo do monitor, sem ritmo. Enquanto procurava no céu uma estrela cadente, era em mim o temporal.
Confira as colunas do Projeto AC Verso & Prosa:
com César Manzolillo
Nossa! Cada vez que leio suas crônicas, amplio junto minhas percepcoes, principalmente aquelas que, por algum motivo, estavam até entao em estado de torpor.
Obrigado pela dose semanal de reflexão!
Ah, amigo, agradeço demais por esse retorno. Grande abraço.
Que texto lírico e poético! Prosa poética das mais sensíveis. A observação da chuva, da natureza e, afinal, a observação de si mesma, por dentro. No mais íntimo do íntimo. Lindo! Parabéns!
Tanussi, obrigada pelas considerações. Tocar ao seu coração é um luxo. Gratidão! Bjs.