ÀS QUARTAS – Chuva na janela

Com Ana Lúcia Gosling

 

Foto: Robin Van Der Ploeg, em Unsplash

 

Desperto, ainda noite. Vislumbro o céu negro no alto do horizonte, através da janela rasgada pelas gotas de chuva. Os relâmpagos clareiam o relógio à cabeceira: quatro horas. Projetam a sombra da cortina contra o teto branco.

Houve estrelas ali, adesivadas. Em toda a extensão, formavam a Via Láctea na direção da porta. Espaçadas, próximas aos cantos, juntavam-se em maior número sobre a cama. Fluorescentes, distinguiam-se, intensas, ao apagarem-se as luzes. Perdiam, lentas, o brilho, antes de meu sono chegar. Desenhara, dia a dia, a minha galáxia, sozinha, colando minúsculas bolas estelares e, de vez em quando, um planeta gordo.

Já me deitei sob esse céu, com a guitarra de Dylan ao fundo e o corpo quente de espera. Os seios roçando em seu peito, no abraço que nos colou. E era amor. O primeiro. Que não adivinha nuvem nem tempestade, apenas cintila.

De quem fora a ideia de cobrir de tinta o que, antes, fora o universo?

Às quatro horas, as décadas passadas evaporaram da minha lembrança. Era ontem, eu, com você, flutuando no espaço. Hoje, nós, atravessando o vazio e a negritude da noite. A rapidez com que se alternavam, diante de mim, o passado e o presente me inquietou. Saí para caminhar.

A chuva dera uma trégua. As gotas magras não me convenceram a vestir a capa. As poças nada espelhavam em seus lagos pretos. Não se via a lua; os postes estavam distantes. Acendi um cigarro, procurando nas árvores os primeiros movimentos dos pássaros que, sabia, àquela hora já zanzavam. Nada. Todos abrigados.

Voltei para abrigar-me também, debaixo do edredom desbotado, em silêncio. No quarto da frente, o amor dormia. Minha palma sobre sua testa fresca, aferindo perigos. Sussurrei: “lembra-se quando acampamos sob Saturno”? Meus dedos, correndo sua pele fina, deixaram estrelas em seus cabelos.

Seu coração apitava em tons baixos. No início, eu dormia à cabeceira, não cessando a vigília. O cansaço me exigiu descanso no quarto ao lado, esvaziado de juventude. O som ampliado da respiração dizia se, aqui, a vida pulsava. A parede nos separando me oprimia.

Culpei o vento por agitar-me o sono. A tempestade, pelo sobressalto. A escuridão pela tristeza. Por que tanta angústia à iminência da manhã? Por que o céu se recolhe tendo parado a chuva?

O longo suspiro, dilatando a sanfona de ar. A retração súbita. O agudo do monitor, sem ritmo. Enquanto procurava no céu uma estrela cadente, era em mim o temporal.

 

ANA LÚCIA GOSLING

@analugosling

 

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Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, no ArteCult, há crônica nova da autora, que integra o projeto AC VERSO & PROSA junto de Tanussi Cardoso (poemas) e César Manzolillo (contos). Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

4 comments

  • Nossa! Cada vez que leio suas crônicas, amplio junto minhas percepcoes, principalmente aquelas que, por algum motivo, estavam até entao em estado de torpor.

    Obrigado pela dose semanal de reflexão!

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  • Que texto lírico e poético! Prosa poética das mais sensíveis. A observação da chuva, da natureza e, afinal, a observação de si mesma, por dentro. No mais íntimo do íntimo. Lindo! Parabéns!

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    • Tanussi, obrigada pelas considerações. Tocar ao seu coração é um luxo. Gratidão! Bjs.

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