Sentaram-se no alto da pedra de onde se avistava a entrada da favela. Josué deixou os amarrados de jujuba no chão, dividindo um saco de biscoitos com Cidinho.
– Troquei com o Grilo. Dei dois amarrados meus por esse biscoito.
– Irado esse de queijo!
– É nosso!
Os dois meninos sempre esperavam, juntos, a noite chegar. O sol já tinha descido no horizonte. As luzes dos barracos se acendiam. As mães punham a mesa para o jantar.
– A rua tá calma?
– Pouco movimento no sinal. Quase não vendi. Pouca criança voltando da escola.
– Tudo atocaiado…medo dos homens voltarem.
Josué apontou o fuzil no chão, à frente de Cidinho.
– Tá de guarda hoje?
Há duas noites que, ao escurecer, os tiroteios começavam e o morro resistia. As crianças da rua de cima, onde morava Cidinho, se revezavam na função de olheiro. Josué era da rua de baixo, onde os evangélicos oravam quando os tiros se iniciavam. Josué e a mãe oravam por Cidinho.
– Tô, até as nove. Chego em casa na janta.
Os amigos mastigaram o biscoito em silêncio. Olhavam o mar de cima. O reflexo da lua rasgava o tapete negro mas quase não se notavam as ondas.
– Amanhã, futebol na areia?
– Firmou!
– Eu queria ter muito dinheiro pra morar na beira da praia – Cidinho sonhava.
Josué se lembrou do “pique-tá” disputado na ladeira, dos pagodes no bar do Aragão. As meninas vindas da praia, com o biquíni molhado se desenhando sob os shorts. Sorriu, malicioso. Cidinho não tirava o olho da entrada. Estava atento aos movimentos no mato, já que só as ruas eram iluminadas. Josué discordou:
– Queria ter dinheiro e viver aqui. Nada de ser mauricinho. Vida de regrinha, pais pegando no pé.
– Tá maluco, mermão? Casa colorida, travesseiro macio…
– Queria aqui, ué! Com essa vista, mano! Esse vento morninho, futebol no campinho.
– Tu tá sonhando, maluco! Papo de criança. Vida real, moleque!
– Vida real é hospital bom, noite sem bala, carne todo dia.
– Trazia a carne e ainda fazia um churrasco pra geral.
Cidinho se levantou subitamente. Movimento suspeito. Pegou o fuzil e empurrou Josué na direção da viela. “Salta, salta”, disse. O amigo calçou os chinelos e desceu a rua correndo, despedindo-se.
– Proteção, meu irmão. Deus contigo.
Cidinho beijou a cruz dourada, pendurada em seu pescoço, e a escondeu sob a camiseta. Atirou para o alto, avisando a movimentação. Ajustou a mira para defender-se do primeiro homem que saísse da mata. Dali a pouco, janta. No dia seguinte, futebol na areia. Ele tinha que estar presente.
DICAS DA SEMANA:
No dia 09/05, quinta-feira, o escritor Luiz Said lançará seu novo romance policial, “Luz sem sombra…Redenção!” pela Editora Multifoco (@edmultifoco).
Será no Bistrô Multifoco, das 18 às 21 horas, na Avenida Mem de Sá, 126, Lapa, Rio de Janeiro, RJ.
Said foi colaborador da Editoria de Literatura deste Portal por muitos anos e possui outros livros publicados.
Para os amantes do gênero, é uma ótima pedida.
Para a sexta-feira, 10/05, a dica é teatral!
A peça “Os Pontos Cegos“, do dramaturgo Walter Macedo Filho, estreia no Teatro Cândido Mendes, em Ipanema, às 20h, para uma curta temporada que vai até o dia 19/05.
O espetáculo tem como mote temas como o etarismo, a medicalização nas relações saber-poder, a intolerância e a toxicidade das relações.
O Teatro Cândido Mendes fica na Rua Maria Angélica, 63 – Ipanema, Rio de Janeiro, RJ.
Ingressos na SYMPLA.
Confira as colunas do Projeto AC Verso & Prosa:
com César Manzolillo
Emocionante!,Toca fundo essa realidade triste. Ritmo, tensão: escritora maravilhosa. Parabéns!
Obrigada, Tanussi, pela leitura sempre carinhosa.