Às quartas – Após

Foto: Austrian National Library, em Unsplash

 

As notícias do fim da guerra não trouxeram tanta alegria como se pretendia. Uma incerteza ficou no ar. Uma sensação de que não se dizia toda a verdade. Pisava-se o chão, desconfiado do chão.

O cenário da destruição acirrou os desafetos. Expunha feridas. A ternura foi enterrada nos acenos frios, por aqueles que desaprenderam a intensidade do abraço.

Retornaram ávidos e urgentes, esmagando a Natureza contra as limites que ultrapassou. Tentando erguer novas paredes. Engolindo o choro e o luto interditados. Conscientes da impotência. Gastos, frágeis.

Nenhum dia de sol, nem o vento na janela foi capaz de restaurar os sonhos afogados por interesses políticos, econômicos. A memória dos que partiram sem rituais atordoava, deixando corações desaquecidos. Os lugares vazios à mesa da tranquilidade. As tradições protegidas sob as lágrimas de saudade.

Ficaram, cara a cara, com a verdade sobre o que eram. Moeda de troca. Cobaias. Massa que se manipula pelo sim ou pelo não, para o bem ou para o mal, a vida ou a morte, conforme o benefício. Ou o calor da discussão. A ilusão de a alma humana evoluir evaporou nos primeiros combates, adiando o projeto de espiritualização da vida. Voltaram os espíritos a seu estado bruto.

Nem valores éticos, nem religião: nada restaurou a fé, nos primeiros dias. Os primeiros reconhecimentos, dias após, foram recriando identidades. Humanas e divinas. Lendas de heróis, histórias de mártires, vidas de santos.

Amizades interrompidas pela morte. Diluídas em embates ideológicos. Romances com finais infelizes. Para muitos, faltava energia para novos encontros. Queriam o espaço do silêncio, da introspecção, onde moravam certezas. Buscavam conexão com um mundo que não existia mais.

Não foi a luta que lhes adoeceu o espírito; foi o desamor. Não foram os mortos mas, sim, os sobreviventes que partiram, atingidos na alma e na voz. Onde o trauma se instalou, não floria a esperança.

O verbo fora esmagado pela força.

Em algum lugar, ideias brilhavam mas não era ali.

 

ANA LÚCIA GOSLING

Ana Lucia Gosling (@analugosling)

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, no ArteCult, há crônica nova da autora, que integra o projeto AC VERSO & PROSA junto de Tanussi Cardoso (poemas) e César Manzolillo (contos). Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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