Às Quartas – Amor

Foto: Filipe Almeida, em Unsplash

 

Não me venha com essa conversa de encontro de almas. O que sinto não é sublimação. Meu amor se ressente da ausência do físico. Preciso sentir aqueles que amo. Beijar, abraçar.

Digo a você: nem o amor espiritual se rende à abstração total. Forjamos uma materialidade às entidades: absorvemos o corpo na hóstia, entregamos oferendas. Impomos as mãos para uma energia divina tocar o corpo do outro.

Para mim, querer você é natural se, quando conversamos, meus pensamentos se tornam menos solitários; se tenho vontade de nos aproximarmos. A seu lado, abrandam-se minhas angústias. Seu olhar me adorna; o meu o reconhece.  Sinto ternura e desejo; conforto e lascívia.

Podemos, até, deixar de lado sentimentos mais profundos, nos divertindo apenas com nossas pulsões. Mas o contrário não existe: o amor não abandona o desejo.  Ele precisa do contato físico.

Já não me serve, apenas, a subjetividade que nos aproximou sem a sua presença real. Sua voz esperada ao pé do meu ouvido. Os afagos, antes ao pensamento, materializados em meu corpo. Sua língua silenciada por roçar a minha.

Não nos misturaremos: serei quem sou e você, quem é. Mas nos ajustaremos, naturalmente, como numa dança. Nesse encaixe, dividiremos muitas coisas. Seus dedos atravessarão meus cabelos. Minha mão tocará o seu sexo. Seus lábios me sugarão pelos seios. E eu desejarei ir mas ficarei presa ao corpo, limitante, nessa entrega. De olhos fechados, pensarei imergir em você e, em ondas, você desaguará em mim. Esse querer e não poder fundir-se nos fará continuar tentando, mesmo inócuo o esforço, até o cansaço chegar.

Depois não haverá silêncio. Mesmo que não falemos, ainda que adormeçamos, não haverá silêncio. Tudo o que nos uniu sob esse mesmo teto forrará a nossa cama. Se você se virar de costas, ainda o sentirei colado em mim. Se eu levantar para beber água, saberá que voltarei para me cobrir com seu lençol. Seremos íntimos e, mesmo se terminarmos em casas separadas, permaneceremos ligados, até a rotina esvaziar  a bolha dessas horas.

Atravessaremos os dias pela certeza do reencontro. Lerei suas mensagens, você ouvirá meus áudios. Criticaremos as mesmas inconsistências, admiraremos as mesmas lógicas. Continuaremos a nos amar, compreendendo a gana nascida do amor ser uma necessidade. Por isso, mesmo o tempo a modificando, sabemos, não se encerrará com a distância, com a idade ou numa noite só.

 

ANA LÚCIA GOSLING

@analugosling

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, aqui no ArteCult, há texto novo da autora. Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

One comment

  • Hoje,,a Ana se superou, se isso é possível, tal a magnitude de seu trabalho . Lírico, amoroso, poético, um texto impecável. Parabéns! É sempre um prazer estético ler os textos da Ana.

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