Às quartas – Amizade de infância

Pela manhã, leio as mensagens enviadas por Natalia de madrugada: duas fotos, capa e contracapa de um livro antigo e os dizeres “Olha o que escrevi na contracapa!”. Havia uma declaração: “Ana Lúcia é minha melhor amiga”. Sorrio, emocionada.

Ana Lúcia era a criança que fui e brincava, com a amiga, de “fazer cópia”. Sim, para nós, “nerds” das letrinhas, pegar os livros e copiá-los à mão, inteiros, em cadernos, era uma brincadeira. Deixávamos os livros em pé na mesa, abertos, enquanto copiávamos palavras, nem sempre entendendo todo o conteúdo.

Não era como o castigo “escrever 100 vezes seu nome”, comum na escolas primárias da época. Era um gesto amoroso de escrita, um bordado, fundado no prazer de decifrar letras e palavras, depois de estarmos alfabetizadas. Fazíamos isso juntas, conversando. Uma vez, transcrevemos o poema “A Casa”, de Vinicius de Moraes. Eu sacando que a casa não existia e Natália questionando minhas certezas: “Parece a casa de Jesus Cristo. Ele nasceu numa caverna. A casa dele não tinha nada, nem parede, nem chão”. Sem perceber, aprendíamos que, para tudo, havia mais de uma interpretação possível.

Adorei amanhecer com o carinho e o resgate de uma declaração de décadas atrás. Duas crianças amigas é sinceridade na forma mais pura. Minha amiga me traz frescas recordações adormecidas. Sempre falamos de um tempo de afeto e inocência. Faz-me lembrar de adultos que já não estão aqui e reforçavam nossa rede de proteção.

Como toda criança, andávamos de bicicleta, gostávamos de jogos de tabuleiro e adedanha (de que, por sinal, minha avó sempre participava animadamente, citando palavras e pessoas que desconhecíamos). Fomos juntas às matinês de Carnaval e brincávamos de pique na vila em que morávamos. Mas o que mais me diverte é recordar brincadeiras só nossas, de ninguém mais. Por exemplo, gostávamos de caçar marimbondos com xícarazinhas de café, de plástico transparente, até o dia em que nossos pais nos proibiram, quando um marimbondo picou Natália.

Eu me lembro, também, de minha avó descascar laranjas sem romper a casca, fazendo uma espiral perfeita. Das cascas, fazíamos bijouterias para nossas bonecas, cobrindo o colo e os braços, como se fossem colares e pulseiras. E de um marcante funeral para Elvis Presley, quando o cantor morreu, feito com uma foto de revista e flores caídas das plantas espalhadas pelas casas da vila.

Amigos de infância guardam memórias únicas. Marcamos um jantar. No restaurante, havia uma arca semelhante à que tínhamos em minha casa. Meu coração se cobriu de saudade da casa materna que não existe mais quando Natalia me apontou o móvel, no canto do salão. Minha amiga continuou: “Naquela gaveta, a gente pegava o quê? Canetinhas?” O móvel de antiquário, em madeira maciça, perde o peso da ausência. Reveste-se de alegria ao ser associado a uma traquinice.

Sorrio, criança, desfolhando novas memórias, esquecidas na maior parte do tempo. Reavivadas, esmagam de prazer o cansaço e a tristeza das horas adultas. Bebemos um vinho e deixamos tudo para trás.

ANA LÚCIA GOSLING

Ana Lucia Gosling (@analugosling)

 

 

 

 

 

 

 

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, no ArteCult, há crônica nova da autora, que integra o projeto AC VERSO & PROSA junto de Tanussi Cardoso (poemas) e César Manzolillo (contos). Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

3 comments

  • Ana, tão gostoso ler nossas memórias! Lembranças tão frescas como um doce amanhecer. Que infância maravilhosa! Vivíamos na mais doce bolha! Nosso mundinho. Bjs de sua eterna amiga!

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  • Oi Ana, tendo sido partícipe e “testemunha ocular” das caçadas aos pobres marimbondos e do enterro do Elvis, fico feliz que nossas lembranças não tenham fenecido e sigam vivas em nossas memórias. Beijo!

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