Fernanda Torres concorrendo ao Globo de Ouro, assim como o filme que estrela, “Ainda estou aqui”, reflete o impacto causado pela obra que vem ganhando reconhecimento mundo afora.
Assisti ao filme. O mergulho no universo dos anos 70 me despertou lembranças afetivas: músicas, trajes, comportamentos sociais. Memórias livres como, possivelmente, seriam as do menino Marcelo, sem o desaparecimento do seu pai. O pano de fundo da trama é, também, o de uma sociedade em que habitávamos a superfície.
A narrativa fática, sem exageros dramáticos, se mostra muito potente. Há pensamento político mas é, principalmente, a história de uma família. Mais real e emocionante do que um discurso panfletário ou uma análise ideológica sobre os chamados “anos de chumbo”. O desaparecimento de um pai amoroso e a luta de sua mulher para localizá-lo e sobreviver a sua ausência, afetiva e financeiramente, são o fio condutor da história. No grão miúdo dos seus elementos, há uma família que perde tudo (a vida estabelecida, o convívio com os amigos, o sonho da casa sendo construída, o futuro) e se obriga a recomeçar.
Fernanda Torres dá vida a uma personagem inspiradora. Reservada, sem esclarecer tudo aos filhos, com expressões muito significativas, ela nos emociona. Quanto mais contida em cena, mais nos dói estarmos sentados na poltrona. Selton Mello nos entrega um Rubens Paiva de pura doçura. Fernanda Montenegro, em curta aparição, é absolutamente marcante. Sua expressão, doente, esvaziada de si, é inesquecível.
Não digo novidades. Tudo está sendo exaustivamente ressaltado nas mídias.
Confesso ter-me surpreendido com a protagonista. Fã da atriz, não imaginava sua força dramática, sobre a qual, para mim, repousa o apelo do filme. Na identificação com a mulher e mãe, no engolir a dor a seco para proteger a vida e a inocência de quem se ama. Por ela não chorar, chorei.
O sofrimento de Rubens não se mostra. Sabemos da prisão, da tortura, da morte e a ausência de imagens nos obriga a criá-las na mente, viver em suspense, sentí-las no coração.
A inteligência dessa narrativa resulta num filme que, mesmo político, não fala a nichos ou grupos. Fala a todos. Em nossa humanidade o drama se apoia: o desamparo da família, a dor da mulher, a perda das referências de vida.
Talvez, por isso, me incomode, um pouco, haver festa em algumas tribunas. Um filme com personagens reais é difícil nos fazer abstrair. Detalhes me fazem admirar sua construção: paralelismos, como a filha filmando a ida pra Londres versus a ida pra São Paulo; a felicidade existindo num momento histórico de dores; o fechamento das cortinas da casa, no corte e passagem para um novo momento da história. Mas “Ainda estou aqui” é sobre dor, luto, instinto de sobrevivência. Em síntese, sobre o irreparável.
Sinto orgulho do filme, do diretor, do elenco, do cinema brasileiro. Saio triste. Ainda vivemos sob os perigos do extremismo e do apoio à repressão. Um vazio, mais do que lágrimas.
Confira as colunas do Projeto AC Verso & Prosa:
com César Manzolillo
Eles foram perfeitos até no nome do filme…