De 1978, guardo lembrança embaçada. Minha primeira Copa engajada foi a de 82. Aquela da seleção do futebol-arte, com Zico em destaque. Meu pai se gabava de ter dispensado o craque da seleção do serviço militar. “Não teria sido contratado pelo Flamengo”, imaginava.
O melhor amigo do meu pai, tio Kleber, discordava. Zico seria Zico de qualquer maneira. O assunto rendia. Papai querendo mérito por antever o sucesso do jogador. Meu tio defendendo que a obrigação de prestar serviço militar era um absurdo. Eram melhores amigos: um, coronel do Exército; o outro, socialista convicto. Meu pai ficava em pé na sala quando tocava o hino nacional. Meu tio acendia um cigarro na janela, prometendo fogos se o Brasil perdesse. Divertiam-me as ranhetices entre os dois. Quando mamãe se levantava para ir à cozinha, o tio cutucava meu pai: “Prima, vou te ajudar a fazer um café porque, nessa seleção, só tem perna de pau”. E papai gritava: “Brasil!”. Em 82 e 86, as divergências acabavam no primeiro gol: os três nos abraçávamos.
Na primeira Copa sem o amigo, fui eu a fazer verdadeira companhia para meu pai. Ele amava futebol e minha atenção às suas explicações o envaidecia. A dinâmica familiar nos distanciava muitas vezes mas o esporte sempre nos aproximou. Juntos, choramos o tetra e o pentacampeonato.
Vida afora, se não assistíssemos aos jogos da seleção juntos, conversávamos nos intervalos entre os dois tempos ou no fim das partidas. Celebrávamos a vitória ou lamentávamos a desclassificação. No 7 x 1 de 2014, não soubemos o que dizer um ao outro ao telefone: “Um vexame, filha!” E só.
Em 2018, eu acompanhava minha mãe numa longa internação. Meu pai não saía mais de casa. Divertia-se em saber que o box da esposa, na unidade semi-intensiva, era o mais frequentado nos dias dos jogos do Brasil, por estar próximo ao posto médico. Todos iam lá ver o “replay” quando um grito de gol surgia nas tevês do andar. Minha mãe se alegrava com aquela pequena algazarra, sem entender o porquê do alvoroço. Era a Copa, diziam-lhe, mostrando o bracelete de pano, com a bandeira do país, colocada em seu braço para a ocasião. Ele demorou a entender o quanto ela se perdera. “Mas você não disse a ela?”. “Ela esquece, pai”.
Papai tinha os olhos maltratados pelo glaucoma. Não conseguia mais enxergar a bola em campo. Não sabia dizer se o gol do Neymar contra a Croácia fora feito com mão ou pé. Assistia à transmissão como se ouvisse rádio. Ao ligar, perguntou-me, baseado nas vezes em que, sobre a mesa do jantar, transformou talheres em jogadores para explicar-me posições táticas: “A seleção jogou bem?”. Mas o aval foi sentimental: “Estamos ganhando. Está bom, pai”.
Dois meses depois do campeonato, meu pai faleceu. 2022 está sendo a primeira Copa sem ele. Percebo, agora: ninguém espera meu telefonema. Se o Brasil for para a final, não marcaremos de assistir juntos, como das outras vezes, na sala grande onde seus netos, pequenos, fingiram chutes a gol. Mas o jogo continua. Mesmo havendo silêncio nos intervalos. Mesmo sem entendermos as regras da partida.
ANA LÚCIA GOSLING
Ana, lindo texto falando sobre a Copa e a cia do seu pai Renato em assistir os jogos. Lembro bem dele! Ele adorava mesmo futebol. Lembro de quando ele foi a Inglaterra acho que pela CBF.