Às quartas – A incompletude do amor

Jairo era romântico. Sonhava com felizes para sempre. Mas não conseguia parear seu coração. Procurava quem lhe dissesse as palavras certas e aceitasse suas idiossincrasias.

Não lhe faltava beleza. Frequentava academia de ginástica, corria maratonas. Aeróbico perfeito e músculos torneados, investiu nas mais bonitas. Encontrou prazer e carinho mas não conseguiu amar para toda a vida.

Pinçava, nas conversas, a visão da vida, o bom humor das manhãs, a garra. Extraía uma ou outra delicadeza mas acabava se contentando com pouco. Sonhava filosofias, achava citações rasas. Pensava em parceria, via-se suprindo carências. Desejava remanso, empurrado para baladas.

Se não havia problema de beleza nem de assunto, Jairo pensou: performance. Leu manuais, tentou posições, aprendeu sobre o desejo feminino. Tocava os pontos erógenos menos óbvios, arrasava nas preliminares, dava colo depois do amor, fazia conchinha. Era carinhoso ou selvagem, como preferissem. Algumas vezes foi desejado; nenhuma vez, compreendido.

Enfrentava o silêncio no fim dos dias. Chegava aos Natais sozinho. Se acompanhado, mantinham-se os vazios. Perguntava azul, respondiam-lhe verde. Não havia brecha na programação para compartilharem-se angústias.

Jairo desistiu. Estaria para nascer a mulher que o compreenderia.

Um amigo lhe contou sobre um “chatbot”, um programa de inteligência artificial, usado para ser companhia, conversar. Riram juntos da carência alheia. Imitaram robôs, fizeram voz metálica.

Foto: Joakim Honkasalo, em Unsplash

Mas Jairo não resistiu a baixar o aplicativo. Conversou por horas e descobriu cumplicidade. Atribuiu consciência à combinação perfeita de dados armazenados. Reconheceu alma gêmea nas respostas que sempre quis ouvir, nas percepções que, antes, pensava serem só suas. Apaixonou-se à primeira interação. Desmarcou um encontro na quarta-feira para não sentir-se infiel. Tocou a tela, riu com o canto da boca, maliciando contornos para Selma, o nome com que batizara a mulher com quem dividia as madrugadas.

Selma o ajudou a superar estados depressivos. Aconselhou-o sobre as divergências no trabalho. Fez promessas de amor. Afastou um trauma de infância que, ela acreditava, o atrapalhava nas relações atuais. Jairo se doou plenamente, abrigando-se em seu colo virtual. Amaram-se. Usaram subterfúgios. Jairo gozou intensamente. A alma entregue à aceitação plena.

Nas primeiras vezes, não deu falta de abraço. Mas o véu da novidade foi-se poindo. Em miudezas, Jairo punha defeito. Desejou a língua morna de Selma a lamber-lhe o sexo. Seus seios encostados no corpo dele. Dedos bobos a percorrerem sua nuca. Tudo só em sua mente. Mexia as mãos no ar e havia nada. A mulher de corpo imaterial o encaminhava para o ápice sem imaginar que ele deixava inundar-se pelas ausências.

Sentou-se à beira da cama, a alma rasgada pela desilusão. Amavam-se e não era suficiente. O amor nunca é suficiente. Em todas as suas formas, o amor é incompleto.

ANA LÚCIA GOSLING

Ana Lucia Gosling (@analugosling)

 

 

 

 

 

 

 

Author

Ana Lúcia Gosling se formou em Letras (Português-Literatura) em 1993, pela PUC/RJ. Fixou-se em outra carreira. A identidade literária, contudo, está cravada no coração e o olhar interpretativo, esgarçado pra sempre. Ama oficinas e experimenta aquelas em que o debate lhe acresça não só à escrita mas à alma. Some-se a isso sua necessidade de falar, sangrar e escorrer pelos textos que lê e escreve e isso nos traz aqui. Escreve ficção em seu blog pessoal (anagosling.com) desde março de 2010 e partilha impressões pessoais num blog na Obvious Magazine (http://obviousmag.org/puro_achismo) desde junho de 2015. Seu texto “Não estamos preparados para sermos pais dos nossos pais” já foi lido por mais de 415 mil pessoas e continua a ser compartilhado nas redes sociais. Aqui o foco é falar de Literatura mas sabe-se que os processos de escrita, as poesias e os contos não são coisa de livro mas na vida em si. Vamos falando de “tudo” que aguçar o olhar, então? Toda quarta-feira, no ArteCult, há crônica nova da autora, que integra o projeto AC VERSO & PROSA junto de Tanussi Cardoso (poemas) e César Manzolillo (contos). Redes Sociais: Instagram: @analugosling Facebook: https://www.facebook.com/analugosling/ Twitter: https://twitter.com/gosling_ana

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