Apodídomi: entrega e restituição cósmica

Apodídomi: entrega e restituição cósmica

 

“Não sou nada.

Nunca serei nada.

Não posso querer ser nada.

À parte isso, tenho em mim todos

Os sonhos do mundo.”

(Álvaro de Campos[1])

 

Começo já explicando a palavra apodídomi, que intitula o artigo de hoje. Vem do grego αποδίδωμι, verbo formado a partir da preposição απο (apô), que significa ‘a partir de’, ‘de’, no sentido de origem e do verbo δίδωμι (dídomi), que pode ser interpretado como ‘dar’, ‘oferecer’, ‘restituir’, ‘retribuir’, ‘entregar’. Está diretamente relacionado ao que quero abordar aqui hoje. Por que o conceito de apodídomi, em Epicteto, se impõe para nós como alternativa para uma vida mais serena e autêntica?

Epicteto é um filósofo da fase do Estoicismo Imperial (entre séculos I e II d.C.), assim como, por exemplo Sêneca e Marco Aurélio. O filósofo nasceu escravizado em Hierápolis, por volta de 55. Foi levado para Roma, por Epafrodito, secretário de Nero, mas devido ao seu forte interesse pela filosofia e por sua inteligência, acabou sendo liberto e dedicou-se aos estudos. Fundou sua escola de Filosofia em Roma, mas em cerca do ano 94 foi expulso junto com outros filósofos e professores, devido à perseguição do imperador Domiciano. Mudou-se para Nicópolis, norte da Grécia, onde refundou sua escola e viveu até sua morte em mais ou menos no ano 135.

Este conteúdo é apresentado no fragmento XI, dos cinquenta e três que chegaram até nos do Manual de Epicteto[2] (anotações feitas por seu aluno, Flávio Arriano, pois o filósofo não deixou nada escrito, assim como Sócrates). Eis o fragmento:

 

“XI. Jamais, a respeito de coisa alguma, digas que a perdeu, mas sim que a restituiu. Teu filho morreu: foi restituído. Tua mulher morreu: foi restituída. ‘A propriedade foi tomada de mim’: pois bem, também ela foi restituída. ‘Mas é sórdido quem a tomou’. O que te importa por meio de quem aquele que te ofereceu a pediu de volta? Na medida em que te são dados, usa os objetos do mesmo modo que se cuida de algo que pertence a outro, como os viajantes em uma hospedaria”. (p. 36)

 

O que sobressai neste trecho é a visão da física (palavra que vem do grego φύσις – physis: natureza). Uma referência atomista, que é bastante evidente no pensamento do epicurismo, também possível de se verificar no estoicismo, profundamente relacionada com a argumentação ética desta escola. Epicteto articula a morte, e como devemos aceitá-la, como sendo um acontecimento natural, como parte intrínseca da matéria que compõe o cosmo. Nós não ‘temos’ ou ‘possuímos’ ninguém ou nada. E por isso mesmo, não ‘perdemos’ – é a finitude da matéria e o seu restituir natural ao cosmo, como nos ensina Epicteto. O apodídomi nos coloca diante de um acontecimento inerente ao que os atomistas criam, e por isso a morte e o ‘desaparecer’ do corpo não devem ser motivo de pavor ou preocupação. Muito pelo contrário: é natural, pois os átomos estão em permanente transformação, nascendo e morrendo continuamente. Este é um tema por demais amplo, na história da Filosofia e merece voltarmos a ele, em outro momento, para explicar melhor.

Para complementar este ponto de vista, destacamos o comentário da professora Raquel Gazolla[3], em sua obra O ofício do filósofo estoico:

“o cosmo estoico – um processo sempre atualizado, uma dynamis-enérgeia cujos produtor e produto são imanentes – (…) O cosmo é um obrar ininterrupto, é trabalho presentificado que não se faz outro, mas é permanentemente movente, obreiro em si mesmo, para si mesmo”. (p. 123).

Sob esta ótica, somos todos partes constituídas deste todo e a morte e o desaparecimento das coisas nada mais são que um ato de recomposição cósmica.

Como vimos acima, a marca mais significativa do pensamento epictetiano é articular questões éticas com a natureza (physis). O que podemos destacar ainda de ‘novidade’ para a filosofia dos estoicos e principalmente do nosso pensador é um convite imperativo, pelo uso do logos, para voltar-se para si e o agir consigo e com os outros. É uma ação voltada para um esforço ético contínuo. É o exercício ininterrupto de pensar (interpretar o que ocorre à nossa volta) e de como (re)agimos. Uma espécie de homologação com a physis e que serve de permanente bússola de orientação para as nossas ações (e reações). É o que Epicteto repete didaticamente ao longo dos outros fragmentos: voltar-se para o que depende de cada um, diante de qualquer circunstância. Difícil. Por isso requer exercício, (auto) observação e o caminho infinito do autoconhecimento, preconizado por tantos outros filósofos.

Por que o conceito de apodídomi, em Epicteto, se impõe para nós como alternativa para uma vida mais serene a autêntica? Por que a possibilidade de se pensar a finitude das coisas pode causar um pavor desestabilizante e origem de tantos sofrimentos? Uma das principais lições do estoicismo é que uma vida feliz seria uma vida de ataraxia, substantivo feminino grego que significa ‘afastar-se das perturbações que afligem a alma’. E com isso, a possibilidade de uma vida mais tranquila e autêntica. Porque conseguir isso nos dias de hoje é um verdadeiro modo único, em si, de se viver.

Do que precisamos abrir mão para nos sentirmos bem? Como vimos anteriormente, para Epicteto, a realidade se divide em dois aspectos: o que depende de mim (o que penso sobre algo/alguém) e o que não depende de mim. A primeira, é exclusivamente dependente do pensar e o (bem) agir, e assim, deve ser lapidado e forjado na interioridade, elaborando melhor consigo e voltando-se para o que se pensa do fato, que é externo, e portanto, não depende de cada um de nós. E o que temos à nossa disposição é a possiblidade de seguir adiante vivendo a vida e compartilhando afetos e experiências.

Neste sentido, trago uma passagem do livro Sobre desistir, do psicanalista Adam Phillips[4]:

“A implicação, aqui, é que a vida pode nos escapar; que, embora estejamos, para todos os efeitos, vivos, precisamos de alguma forma encontrar um meio de anexar e possuir a vida, como se fosse algo que precisamos colonizar, reivindicar ou nos apropriar. Que a vida deve ser invadida e subjugada, como se fosse um país estrangeiro, não um lugar onde já estamos vivendo. A vida como outro lugar, como algo que precisamos alcançar, ou encontrar, ou buscar.” (p. 47)

A vida é aqui e agora. E o que fazemos deste ‘instante-já’ é uma deliberação de cada um. Volto a destacar o chamamento que Epicteto nos faz há quase dois mil anos, que é esse ‘domínio de si’ e o foco no aqui e agora e no que depende de cada um de nós, incluindo neste conjunto o não temer a morte, tema caro para as demais escolas do helenismo (Cinismo, Epicurismo e Ceticismo).

Para Epicteto, o cosmo é um todo orgânico, onde não se pode falar de ética sem pensar a física. É um pressuposto implícito. E o verbo apodídomi, neste sentido, engloba apropriadamente o pensamento de nosso filósofo sobre como devemos agir diante deste inelutável fato da finitude (de tudo, exceto do cosmo). Tudo há de se decompor e retornar ao cosmo. Ou ainda no belo verso de Padre Antônio Vieira[5]:

“sois pó, e em pó vos haveis de converter”.

APODÍDOMI. APODÍDOMI. APODÍDOMI.

Que possamos seguir adiante, e, pelo uso da razão, do senso crítico, livrarmo-nos do senso comum, das opiniões alheias e das desmedidas (hyubris). Livrarmo-nos dos medos. Seguirmos um bem viver sereno, autêntico e cheio de esperança. Nesta linha de pensamento, cito um trecho bastante pertinente, da obra O espírito da esperança, do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han[6]:

“Estamos numa multicrise. Olhamos amedrontados para um futuro sombrio e falta esperança em toda a parte. Saltamos de uma crise para outra, de uma catástrofe para outra, de um problema para outro. Entre pura resolução de problemas e gerenciamento de crises, a vida definha: torna-se sobrevivência. A ofegante sociedade da sobrevivência assemelha-se a um doente que tenta de todas as maneiras repelir a morte iminente. No entanto, apenas a esperança nos permite recuperar a vida que é mais que sobrevivência. Ela estende o horizonte do significativo, que revitaliza a vida e lhe dá asas. A esperança nos presenteia com o futuro.” (p. 10)

Que possamos (que tentemos, ao menos) viver e agir uma vida serena e seguirmos adiante com alegria. E aqui, para encerrar, deixo o trecho de uma canção de Martinho da Vila, para embalar (com samba) sua reflexão filosófica de hoje[7]:

“Canta, canta, minha gente
Deixa a tristeza pra lá
Canta forte, canta alto
Que a vida vai melhorar

Que a vida vai melhorar
Que a vida vai melhorar
Que a vida vai melhorar
Que a vida vai melhorar”

 

Cantar para o cosmo que ele apodídomi!

 

ZAL

Zalboeno Lins (ZAL). Foto: Divulgação

 

 

 

 

 

 

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REFERÊNCIAS:

[1] Trecho do poema Tabacaria, de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa.

[2] Aqui utilizamos a versão de tradução do Professor Aldo Dinucci:

ARRIANO, F. O Manual de Epicteto. Tradução de Aldo Dinucci. Campinas, SP: CEDET, 2020.

[3] GAZOLLA, R. O Ofício do filósofo estoico: o duplo registro do discurso da Stoa. São Paulo: Edições Loyola, 1999.

[4] PHILLIPS, Adam. Sobre desistir. Tradução de Breno Longhi. São Paulo: Ubu Editora, 2024.

[5] VIEIRA, Antônio. Sermões de quarta-feira de cinza. Org. Alcir Pécora. Campinas, SP: Ed. Da Unicamp, 2016. p. 69

[6] HAN, Byung-Chul. O espírito da esperança: contra a sociedade do medo. Tradução de Milyton Camargo Mota. Petrópolis, RJ: Vozes, 2024.

[7] Compositores: Martinho Jose Ferreira

Letra de Canta, Canta Minha Gente © Universal Music Publishing Mgb Brasil Lt, Hhr Records ( Hhr Producoes Artisticas Ltda ).

 

 

Author

Me chamo Zalboeno Lins Ferreira, mas pode me chamar de Zal.☺️ Sou graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento do RJ. Em seguida concluí o Mestrado em Filosofia Antiga, com Dissertação falando sobre o conceito da morte e vida feliz em Platão, Epicuro e Epicteto. E atualmente faço Doutorado em Filosofia Antiga pela UERJ, com o projeto de pesquisa sobre o conceito da morte e felicidade em Epicuro e Krenak. E nesta pesquisa, vou traduzir as Cartas de Epicuro do grego antigo para o português e anexá-las à Tese. Mais uma contribuição que fica das Cartas epicuristas. Também realizo palestras de temas de Filosofia, tanto para um programa interno da empresa onde trabalho, quanto para pessoas fora da organização. Semanalmente também apresento o Filosofia de Primeira, no Programa De Primeira Categoria da Rádio Itapuama FM (92,7) de Arcoverde (PE). Comento ideias e temas de autores de Filosofia em inserções de 4 a 5 minutos... É uma forma de deixar a Filosofia acessível para mais e mais pessoas, de forma simples, sem descaracterizar a ideia original do pensador. Mas acima de tudo, sou um grande admirador da Filosofia, como meio de nos resgatar do senso comum...☺️ Num direcionamento de uma vida feliz! Uma vida compartilhada! E por fim, como costumo repetir: sigamos em philía!

4 comments

  • Que texto provocador! Como leiga em filosofia, o que mais me tocou foi a metáfora da hospedaria, essa ideia de que vivemos, usufruímos, mas nada é verdadeiramente nosso. Um exercício radical de desapego.
    Mas confesso que fiquei com uma inquietação: se são justamente nossos afetos e vínculos que nos fazem humanos, como vivenciar essas conexões sem a dor da partida? O texto fala de serenidade através da compreensão de que tudo retorna ao cosmos, mas é possível (ou desejável?) acalmar a alma diante das perdas que nos atravessam?
    Entendo o conceito de apodídomi – restituir em vez de perder. Mas a dor da perda não seria também parte legítima dessa experiência humana de vínculos profundos? Como equilibrar esse desapego filosófico com a intensidade dos afetos?
    Agradeço pela reflexão tão necessária sobre finitude e desapego!

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