Hoje, no projeto AC Literatura Convida, nossa colunista Ana Lúcia Gosling (@analugosling) nos traz o conto “A Cozinha da Dona Jurema“, da autora Maria Helena Mossé (@mh_297):
A Cozinha da Dona Jurema
Foi numa segunda feira que Dalva os viu. Um casal jovem e seu pequeno cão em frente à porta aberta do apartamento ao lado. Era óbvio que haviam se mudado: das caixas de papelão brotavam roupas, cabides, lâmpadas, fios, panelas, um bricabraque confuso. No meio da sala o tampo oval de mármore branco da mesa de jantar.
Mudamos! disse o rapaz, erguendo os braços. O sofá vai subir pela janela, a senhora quer ver?. Dalva recusou e agradeceu. Quieta, gozava do alívio que brotara lá dentro – ah, acabou-se a expectativa. À venda há quase três anos, viu todo tipo de gente visitar o apartamento. Do velho com a sirigaita ao casal tatuado da cabeça aos pés. Detestou todos, claro.
Alguns dias depois, enquanto espera a entrega do almoço, vê o vizinho de bermudas no hall de serviço, cachorro ao colo. Atrás da porta, meio corpo e um olho para fora, a ponta do chinelo aparecendo, espia o rapaz, que se aproxima, sorri, e pergunta onde ela costuma pedir a comida. Em seguida apresenta Beto, um chihuahua mas… veja … peludo!, faz questão de frisar. A cozinha é da dona Jurema, boa e barata, diz Dalva, mais interessada nos olhinhos vivíssimos do Beto e no seu irresistível interesse por ela. Coça-lhe o focinho, aventura-se nas orelhas e estica os dedos na direção da barriga rosada e morna. O rapaz agradece e fica de anotar o telefone. Tchau. Dalva sorri e fecha a porta. A imagem está gravada em seus olhos, Beto, com seu jeito de brinquedo de pelúcia bege claro e máscara cor de açúcar queimado em volta dos olhos.
O cão, o skate, os olhos ingênuos do rapaz, o tampo oval, sem dúvida é um apartamento de jovens. Como será? Ela sabe, porque o porteiro uma vez lhe falou que está na moda tudo integrado, a senhora imagina a cozinha aberta para a sala? Os quartos sem parede? Não. Dalva não imagina.
Beto late. Beto late para quem chega. Late para o barulho do chaveiro carregado de chaves, late para o zumbido da mosca. Ela não se importa. Um dia, encontrou o casal perto do elevador e apressou-se em dizer que os latidos não a incomodavam, nem um pouco. Eles sorriram, tão jovens… A partir daí, quando Dalva chega ou sai , a moça abre a porta com o Beto ao colo. Dalva acredita que é para agradá-la. Acredita até que os vizinhos gostam dela.
Que coisinha linda, como cresceu, hein, garotão? E vocês dois? Tiveram medo do temporal? Aqui falta luz de vez em quando. A luz é tão cara, culpa da Light, né? Se precisarem de qualquer coisa é só me avisar, tá? É só bater, tá?
Assim, nesse clima de gentilezas, achou de bom tom comprar um mimo. Na pet shop encontrou uma bolinha verde e amarela com a letra B. Riu feliz. Antes de voltar para casa, passou num salão que dizia: combo de 2ª feira: raiz + pé e mão por R$ 110,00. Imperdível! Em quarenta minutos foram-se dois anos de desleixo. Sentiu-se leve, quase saltitante.
No dia seguinte, por volta das oito da manhã, bate na porta ao lado: Beto! Beto! A vizinha abre, sonolenta, o cachorro ao pé, um sorriso sem graça pendurado na cara. Desajeitada Dalva rasga o embrulho, joga a bola que quica e entra pela sua própria porta. O cão zuniu, a dona atrás, os dois sumiram naquela sala abafada e cheirando a mofo. A velha senhora apertou os olhos e tremeu o corpo, sentindo as suas entranhas expostas à espontaneidade do cão e da moça.
Batendo com a mão espalmada na coxa que sobrava sob o shortinho, a jovem chama filho, filho, vamos! O cão passa, olhos apontados para Dalva, rápido na sua pequenez, unhas tec tec no assoalho, bola na boca, focinho empinado. É muito sol pela manhã, o sol queima tudo, deixa manchas nos estofados, na nossa pele, apaga os retratos nos porta-retratos, porisso eu fecho tudo, sabe? É um exagero de sol! Sim, claro, claro dona Dalva, vamos Beto, obrigada, ele curtiu a bolinha!
Hoje é sábado, dia do Beto latir várias vezes para as visitas ao jovem casal. Nas pontas dos pés, Dalva espia pelo seu olho mágico quem chega à porta, a cada vez que a luz vaza a presença de alguém. Através das lentes borradas, não vê grande coisa, mas ouve: Mamãe que bom que você veio ué a Claudinha não veio não pois é minha filha tua irmã tá enjoada já no quinto mês e enjoada poxa mãe que pena ela vem outro dia né e o apartamento tá ficando lindo obrigado sogrão que bom que vocês estão curtindo e olha hoje vai ser japonês sábado passado foi pizza lembra lembro claro filho conosco está sempre tudo bem e olha trouxemos sorvete de pistache para arrematar e a Tininha já avisou que vai levar o que sobrar de volta ela adora sorvete…
Sobraram o silêncio e os sapatos deixados à porta: um par de sandálias de plástico colorido, tênis pretos sem cadarço, um scarpin e rasteirinhas de menina tamanho 33 ou 34.
Ao fim do dia, ao deixar o lixo no corredor dos fundos, espreita os rastros do almoço, separado e organizado pelos jovens preocupados com o meio ambiente: caixas do japonês de lanternas coloridas da rua de baixo, garrafas de cerveja artesanal, o isopor tamanho grande da sorveteria da esquina que Dalva conhece tão bem, cheia, barulhenta de crianças que apontam seus dedinhos para os sorvetes.
A noite aquietou os latidos do Beto, os risos e a música do apartamento ao lado. A lua tímida espreita à janela mas Dalva não vê.
Liga a televisão.
O rapaz, até hoje, não pediu o telefone da cozinha boa e barata da dona Jurema.
Minibiografia da autora
Maria Helena Mossé nasceu no Rio de Janeiro. É psicanalista. Coordenou a Oficina da Escrita na Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro onde fez sua formação psicanalítica. Escrevia, mensalmente, para o site português Storm-Magazine no caderno Crônicas do Rio de Janeiro. Em 2016 publicou o livro de contos Batom no Dente, editora 7Letras.
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AC Literatura Convida foi idealizado pelo nosso colunista César Manzolillo (@cesarmanzolillo).
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