Thássio Ferreira (@thassiof) é poeta e ficcionista, autor dos livros de poesias (DES)NU(DO) (2016), Itinerários (2018) e agora (depois) (2019) e da coletânea de contos Nunca estivemos no Kansas (2022). Também assina a coluna Alguma coisa em mim que eu não entendo, da revista Vício Velho. Além disso, tem poemas e contos em publicações do Brasil e de Portugal. Confira a entrevista exclusiva que preparamos pra você.
ArteCult: Como a Literatura entrou na sua vida?
Thássio Ferreira: Quando fui alfabetizado, ganhei alguns livros infantis de presente, e um deles, chamado No reino da pata Leca, era todo em versos rimados, e este jogo de linguagem me encantou de imediato — ou seja, meu gosto pela ficção escrita vem desde o momento em que fui capaz de compreendê-la.
AC: Especificamente com relação ao ofício de escrever, que procedimentos costuma adotar? Escreve todos os dias? Reescreve muito? Mostra para alguém durante o processo?
TF: Procuro escrever com frequência, mas não me cobro de forma excessiva. A escrita (me) demanda certa disciplina, mas o tempo da criatividade é outro, tem seu próprio tempo. A reescrita, por outro lado, é quase uma obsessão. Não considero meus textos prontos e acabados nem quando são publicados, e posso decidir revisar uns e outros a qualquer momento. Com o tempo, cultivei um círculo de pessoas a quem gosto de mostrar alguns escritos, pedir impressões, dialogar. Acho essa troca riquíssima.
AC: No seu caso, de onde vem a inspiração?
TF: De “lugares” muito diversos. Tenho certa inclinação a me sentir mais inspirado em contato com a natureza, e quanto mais íntimo esse contato, distanciado do ritmo da vida cotidiana, mais eu me sinto propenso a ter alguma ideia, mesmo que não venha daquele momento ou ambiente; pode ser a canalização de algo observado antes, um elemento único, ou uma reunião de elementos que eu nunca tivesse organizado mentalmente daquela maneira antes. Essa fagulha, seja quando se acende no instante mesmo em que ocorre, seja quando se (re)materializa num momento posterior, pode vir de praticamente qualquer lugar, de qualquer “coisa”.
AC: Fale um pouco dos livros que já publicou até hoje.
TF: O mais recente se chama Nunca estivemos no Kansas e reúne 22 contos, alguns premiados (Off-Flip 2019, Prêmio Cidade de Manaus 2020 e finalistas do Prêmio Sesc 2017). Existe uma espinha dorsal de teor político que atravessa o livro, não de forma proselitista, mas sim construindo uma cartografia através de histórias e da linguagem, desde um idílio onde nunca estivemos até os dias presentes e além. Antes deste, publiquei agora (depois), que retrata um relacionamento em 52 poemas, ordenados cronologicamente de trás pra frente, desde a superação após o término até o encantamento inicial. Em 2018, lancei Itinerários, também de poemas, publicado como obra vencedora do concurso literário da Editora UFPR. Nele, a poesia mais pessoal e a de caráter mais coletivo, político, se entrelaçam e desembocam ainda numa terceira vertente mais onírica e voltada para o espanto das potencialidades da própria linguagem e da criação poética. Este livro pode ser baixado gratuitamente no site da editora (https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/63940). Meu primeiro livro, também de poesia, chama-se (DES)NU(DO), que é mesmo uma obra de apresentação, em que me revelo aos outros como artista, como poeta.
AC: O fantasma da página em branco: mito ou realidade? Isso acontece com você? Em caso afirmativo, como lida com a questão?
TF: Tem um tanto de mito e um tanto de realidade. Para escritores que transitam entre gêneros, como eu, creio ser algo mais raro, ou menos paralisante. Se esbarro numa dificuldade muito grande em escrever determinado texto, posso exercitar-me em outro, muitas vezes sem maiores pretensões, apenas como exercício, como forma de me desenvolver. Ainda, para mim funciona muito revisar escritos já existentes, aprimorá-los, ou recorrer a anotações antigas, fragmentos, ideias guardadas que podem ser usadas num momento de escassez.
AC: Um livro marcante. Por quê?
TF: Grande Sertão: veredas, por tantos motivos que é quase clichê e simultaneamente dificílimo enumerar. Pelo trabalho absurdamente intenso com a linguagem, moldada a olhos vistos para ser em si uma experiência estética e comunicacional. Pelo retrato de um Brasil fora do óbvio. Pelas histórias de amor, poder e dúvida que se entrelaçam. Pela ousadia em borrar fronteiras de gênero e sexualidade em plena década de 50 do século XX.
AC: Um escritor marcante. Por quê?
TF: Clarice Lispector, a outra gigante da literatura brasileira, também por motivos inumeráveis. Além do apuro na construção narrativa; das metáforas vertiginosamente inusitadas, muitas vezes incrustadas no ambiente mais cotidiano, intensificando seu efeito; da fluidez do texto (não só o tão incensado fluxo de consciência que ela dominava, mas também os diálogos e mesmo os trechos em narrativa mais “clássica”); e da poesia visceral e delicadíssima de tantas passagens recortadas e repetidas até hoje, existe uma sabedoria na obra clariceana que é fenomenal. Há uma história que ilustra isso, não sei onde li: o Rosa uma vez encontrou Clarice e disse que a lia “não para a literatura, mas para a vida”. Clarice é isto: literatura de alta voltagem que ainda por cima nos ilumina a própria a vida.
AC: Projetos futuros: o que vem por aí nos próximos meses?
TF: Existem alguns contos em andamento que pretendo terminar este ano e o projeto de um romance ainda não iniciado. Também tenho conversado com uma pequena editora do Rio de Janeiro sobre um novo livro de poemas, mas o foco em 2022 é fazer o Nunca estivemos no Kansas, recém-lançado, chegar a mais leitores. É um livro que dialoga bastante com o tempo presente, e acredito muito na sua força.
AC: Entre os seguidores do canal de Literatura do Portal ArteCult, muitos são aqueles que escrevem ou que desejam escrever. Que conselho ou dica você poderia dar a eles?
TF: Reescrevam, revisem, reescrevam, não tenham pudor ou dó de cortar, mostrem seu trabalho a outros, para que o critiquem e enriqueçam, e estudem. Hoje em dia, há diversos cursos e oficinas muito úteis para expandir nossa visão e nossos modos de escrita.
AC: Para encerrar, pediria que deixasse aqui uma amostra de seu trabalho como autor.
A (meio do) caminho
Ele parou o carro e desceu, antes que eu pudesse organizar meus pensamentos para dizer qualquer coisa. Olhou a paisagem à frente, em seguida para os lados — amplidão sem eira nem beira — e enfim apoiou as mãos sobre o capô, reclinado. A cabeça baixa, o queixo quase tocando o peito. Saí do carro também.
— O que foi?
— Estamos perdidos.
— Quê??
— Estamos perdidos.
— Como podemos estar perdidos? Estamos na mesma estrada há três horas! Sem nenhuma bifurcação, nada.
— Pois é.
— Mas então?
— Não sei.
— Não sabe o quê?
— Então não sei.
Embora cada vez mais irritado, eu tentava manter alguma racionalidade:
— Você tem certeza?
— Sim.
— Mas como?
— Como eu tenho certeza ou como nos perdemos?
Uma brecha.
— As duas coisas.
Soltou um longo suspiro e finalmente levantou a cabeça, olhando para mim:
— Olha, agora não importa muito como nos perdemos, nem como eu tenho certeza disso. O que importa é o que vamos fazer.
— E o que vamos fazer?
— Então, eu já disse: não sei.
— Bom, acho que só temos duas opções, não? Seguir em frente ou voltar.
A estrada a perder de vista, enquanto eu buscava não perder a calma. Apenas por automatismo, esperava que ele me desse alguma pista sobre o melhor paradeiro, algum elemento passível de entrar no cálculo. Mas não:
— Também podemos esperar passar alguém.
— Só se for Godot! Três horas nessa estrada. Não passamos por ninguém. Nenhum carro, ônibus, bicicleta, nenhum pedestre, posto de gasolina, restaurante, nada! Nada!
Eu estava talvez a um quase de agarrá-lo pelos ombros e sacudi-lo. Esbofeteá-lo, até, feito um Descartes que finalmente perdesse os caminhos da razão nesse confronto com Estragon.
— Ficar nervoso não vai ajudar.
Olhei-o como se o quisesse matar. Eu queria. Mas, provavelmente, teria mais chances de sair do meio do nada com ele do que sem.
— Esqueça essa ideia de esperar alguém. Você acha que estamos mais perto de chegar ou de voltar?
— É difícil dizer… Já que estamos perdidos.
Não adiantava tentar fazê-lo coautor do meu raciocínio. Eu teria que ser mais específico: arrancar-lhe nacos de informação como se lhe arrancasse um parafuso e nada mais, uma chapa de aço bem aplainada, que eu mesmo integrasse nalguma engrenagem mais complexa. Maldita mais-valia.
— Se conseguirmos voltar, poderemos tentar de novo. Parece melhor do que arriscar irmos em frente e não chegar a lugar nenhum.
— Foi o que você disse da última vez…
Interrompi-o, rispidamente:
— Não interessa!! — E completei, lamurioso: Como eu queria saber dirigir… — Ocorreu-me um lampejo:
— Você podia me ensinar.
— Sim. Agora?
Então? O cérebro já se aguçara a evitar automatismos. Pensar, analisar, avaliar. A poeira amarela flutuava ao redor (perdida também?), mesmo que não sentíssemos o vento. O sol a meio caminho entre o alto do céu e o poente.
— Não, agora não. Melhor depois. Temos que resolver o que fazer.
— Tudo bem.
— Temos gasolina para três horas?
— Acho que sim.
Então. Foi minha vez de suspirar. Ainda busquei, nas reentrâncias de minhas sinapses, no estalido mudo de seus encontros elétricos, suas promiscuidades químicas, algo que me sugerisse outra opção. Pensar, analisar, avaliar. Mas não. De novo, o mesmo. A mesma (não) alternativa. A mesma (não) saída:
— É melhor voltarmos, então. Amanhã tentamos de novo.
— De novo — ele repetiu. Parecia mais desanimado que da última vez. Quando o ponto de não retorno? Hoje não. Hoje a coragem não. Voltamos em silêncio, pela estrada vazia.
Armadilha
Fui eu mesmo que me enfiei nessa armadilha (então: put the blame on me, boys, put the blame on me). A sabedoria do depois é a dolorosa sabedoria de agora. Porque saber: o amor não nasce, nem surge, nem se dá — o amor se constrói (por nós, em nós, no duplo sentido da palavra) — saber isso foi apenas memória armazenada, que não me impediu de construir esse amor por dentro dos invisíveis, dos intervalos, enquanto eu achava, ou fingia, que o negava.
Feito quando: te chamei, e não vieste; e chamei de novo, e de novo não; e como pude não enxergar que te chamar uma terceira vez já era construir o amor? Tolo, tolo, estúpido, fingido.
Chamei. E não. Mas então era tarde. O amor já estava: reluzindo, embora inacabado. Embora? Todo amor é sempre inacabado.
E agora: desaprendi a desconstruir. Talvez desfazer aquele amor anterior, desatando nós de marinheiro (tão intrincados que nem sei como), tenha consumido meus dedos, meus macetes, minha lucidez talvez?
Então não te chamo mais. Vou. Tu és a minha rendição.
Retrato de moça no vagão
Ela chora, encolhida contra a parede do vagão, apoiada numa perna esticada, tesa, enquanto a outra, semi-flexionada, vibra nervosamente.
Usa um vestido de Rorcharsch: naquele pranto, o fundo negro do tecido, seu corte reto e certa poeira cinza agarrada à barra dão-lhe ar de angustiado desamparo, quase um luto moderno sob a dor movendo-se sobre a pele. Mas a quem não lhe reparasse o rosto, ou lhe flagrasse em sorriso, num outro dia, num outro vagão, a estampa florida com seus amarelos e laranjas diria em voz risonha algum desenho mais alegre.
Colado ao rosto: o celular. Uma presença que não é bem presença — tão distante e tão próxima (ali, logo ali) do meu olhar pungido — desenha-lhe estampa de aquarela na face, fios d’água escorrendo, os cantos da boca crispados, cabelo desarrumado caindo-lhe um pouco sobre os olhos.
Ela fala, abafadamente, tudo é tão abafado neste vagão, e não ouço, como não ouço aquela presença em voz que lhe chega pelo telefone.
Não ouço, mas vejo, em meio a tanta gente que não vê as gentes outras ao redor: ela chora. Uma moça chora à minha frente, no metrô de fim de tarde. Não desvio os olhos, mas por razões diversas das tuas, que percorre essas linhas buscando saber o que aconteceu ou acontecerá em seguida: eu não preciso entender. Olho-a chorar, apenas, tão misteriosamente humana e incompreensível quanto eu. Até que chega minha estação.
#
a palmeira em ponta
pinaculando um desafio
à longidão
mais próxima a
mangueira chorona
arpejando amarelos
o vento noroeste
goteja a noite
em ginga lenta
enquanto o estio
de silêncios
simplesmente
se acontece
#
que nome envaidece a névoa
vir cantar nas várzeas cá
ao pé de mim e minhas espadas
de são jorge em horas
de desvãos
dentre as lentes sobre o nervo
(sempre exposto como
um nome de arbusto)
certas volutas sem dúvida
são mais que bem vindas
quando enxergar, em vez
de um pra dentro
se automatiza em parir
nomeamentos
quase a esmo
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Bem, é isso. Até a próxima!
AC Encontros Literários tem curadoria e apresentação (live) de César Manzolillo (@cesarmanzolillo).