Sonia Maria Mazzei (@mazzeisoniamaria) é carioca e bacharel em Letras (Português-Literaturas) pela UFRJ, com pós-graduação em Literatura Portuguesa pela UERJ. É autora três livros infantis: Vida de balão é foguinho (1995), Doce surpresa (Prêmio Carioquinha de Literatura Infantil de 2004) e Vida, encontro e festa: no vai e vem da floresta (2018). Participou de várias coletâneas de contos e poemas e, em 2017, lançou seu primeiro livro solo de poemas: Revoada. Envelope violeta (2020) é seu mais recente livro de poemas.
Confira abaixo a entrevista exclusiva que preparamos pra você.
ArteCult: Como a Literatura entrou na sua vida?
Sonia Maria Mazzei: Fui uma grande ouvinte de histórias quando criança. Era na casa de minha avó, que nos reuníamos atentos, eu e os primos, para desfrutarmos da leitura que faziam os mais velhos. Foi quando abri a porteira do Sítio do Pica-Pau Amarelo, quando chorei ao saber que o Soldadinho de Chumbo havia derretido, quando provei do chocolate que revestia a casa da bruxa em João e Maria, quando, encantada, vi abóboras virarem carruagem e quando descobri quer o Patinho Feio era um lindo cisne negro. Foi aí que a literatura se apossou de mim e eu dela. Destaco a fala da fala de um velho pirata no livro Reforma da natureza, de Monteiro Lobato. Emília encontra com o velho pirata e se espanta por ele estar vivo: O senhor caiu bem dentro da boca do crocodilo, eu li. O pirata responde: Sim. É isso que os livros dizem. Mas tanto é falso que aqui estou. O fato de a gente ler uma coisa não quer dizer que seja exata. Os livros mentem tanto como os homens.
AC: Especificamente com relação ao ato de escrever, que procedimentos costuma adotar? Escreve todos os dias? Reescreve muito? Mostra para alguém durante o processo?
SMM: Indisciplina total, mas escrevo todos os dias. Nem que seja uma frase, uma palavra que me leve, no dia seguinte, a um poema, ou a outro texto literário. Reescrevo muito. Os poemas… Releio várias vezes. Procuro o ritmo, metáforas, palavras que caibam. Gosto muito de finais inesperados. Durante o dia, não tenho o hábito de escrever por muito tempo. Mas à noite:
Vigília
A noite
Deu-me a Lua
E tempo
Para os livros.
Sigo em vigília,
Pelo prazer
Do rito,
Do manuseio.
E, por amar
Cada palavra
Eu suponho
Mudei de vez
A hora
Dos meus sonhos.
(Revoada, p. 71)
AC: No seu caso, de onde vem a inspiração?
SMM: Ela vem, ou vou até ela. O escritor precisa ser observador, sensível, ter domínio da língua e bastante imaginação. Por vezes, uma ideia ou pensamento, surge de repente, quando leio uma notícia, quando observo alguém na rua. Quando leio um livro, uma só palavra pode me inspirar. Fecho o livro e escrevo um poema. É um processo mágico. Já fiz poemas em que o último verso surge primeiro:
A noite engana a gente
Despida de verdades
Vestida de incertezas,
Sombreia meu caminho,
Traz dúvidas, suspeitas.
Seu manto, seu negrume,
Disfarça, enturva, mente.
Encobre o que era dia,
Constrói alegorias,
A noite engana a gente.
(Revoada, p. 25)
AC: O fantasma da página em branco: mito ou realidade? Isso acontece com você? Em caso afirmativo, como lida com a questão?
SMM: Mito. A página, ou a tela em branco, é o campo das possibilidades. Por isso, não tenho medo do fantasma. Não posso ver fantasmas onde há a possibilidade de criar.
AC: Um livro marcante. Por quê?
SMM: Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Já li e reli essa obra. Me atraem a linguagem coloquial regionalista e original. As quase 600 páginas soam para mim como uma epopeia. Um grande poema. Riobaldo, o protagonista, consegue nos levar diante do relato de sua vida, seus medos, amores, traições… A paisagem do sertão é um palco onde atuam magnificamente os personagens que aplaudo de pé. Viver é muito perigoso. O Senhor… Mire e veja: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas, mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Nonada é a primeira palavra que aparece e surge mais seis vezes. Antes de terminar o livro, ela aparece de novo na penúltima linha da última página. Nonada: coisa sem importância, um quase nada. Por que esse livro me marcou? Ele é, para mim, um quase tudo.
AC: Um autor marcante. Por quê?
SMM: Fernando Pessoa. Antes de cursar a faculdade de letras, eu já conhecia um pouco da obra do autor. A pós-graduação em literatura portuguesa trouxe-o para mais perto ainda. Sua história e sua vida confundem-se com seus versos. Fernando Pessoa, com seus heterônimos, se multiplica.
Todas as cartas de amor são ridículas.
Não seriam cartas de amor,
Se não fossem ridículas.
(Trecho de “Todas as cartas de amor são ridículas” – Álvaro de Campos – Heterônimo de Fernando Pessoa)
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações.
(Trecho de “O guardador de rebanhos” – Alberto Caieiro – Heterônimo de Fernando Pessoa)
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
(Trecho de “Isto” – Fernando Pessoa)
Fernando Pessoa é inesgotável. Se alguém deixou de ler sua obra ou parte dela, leia e, principalmente, sinta.
AC: Fale um pouco dos livros que já publicou até hoje.
SMM: Vida de balão é foguinho (1995) foi meu primeiro livro lançado. Foi publicado pela editora ZMF e ilustrado por Leonardo Vieira. Essa obra nasceu em uma roda de leitura que eu e mais seis amigos fazíamos todas as segundas-feiras. Cada um levava o que havia escrito naquela semana para apresentar para o grupo. Escrevi Vida de balão é foguinho numa noite de junho.
Era uma noite de junho
Daquelas enluaradas.
(Trecho do livro)
O livro fala do amor de um balão pela Lua e da tristeza que acontece quando o balão começa a se apagar. O grupo gostou tanto que me incentivou a transformá-lo num livro.
Doce surpresa
A prefeitura da cidade do Rio de Janeiro lançou um concurso no ano de 2004: o Prêmio Carioquinha de Literatura, com o tema sobre o Rio de Janeiro. Era preciso enviar texto e ilustrações. Dessa forma, preparei o texto. Contudo, faltavam as ilustrações. Falei com o ilustrador Leonardo Vieira, mas ele me disse que seria impossível ilustrar um livro em uma semana. Eu gostava do texto e não queria deixar de enviar. Então, com o pouco que sabia, comecei a criar as ilustrações. Doce surpresa é a história de uma formiguinha que morava em um hotel e adorava doces. Certo dia, ela ouviu que haveria uma excursão ao Pão de Açúcar. Imaginem que alegria! Maior ainda foi a minha, quando recebi o resultado do concurso. O lançamento ocorreu em 2007 na Biblioteca Escolar Municipal de Copacabana Carlos Drummond de Andrade, com edição da Prefeitura do Rio de Janeiro, fazendo parte da Coleção Biblioteca Carioquinha. Até hoje, no mês de março, aniversário da cidade do Rio de Janeiro, recebo convites para falar de Doce surpresa em escolas, bibliotecas e creches.
Revoada
Participei de muitas antologias, mas meu sonho era um livro solo de poemas. Revoada surgiu quando fiz uma viagem a Portugal e tentei a todo custo fotografar um bando de andorinhas. Eram tão ligeiras que tive que ir clicando, clicando, até que consegui uma única foto. Capturar andorinhas em pleno voo foi tarefa árdua, mas não impossível. E foi essa certeza que me fez reunir poemas e partir em revoada. Com cinquenta poemas e fotos, o livro foi lançado em 2017, pela Editora Penalux, no Instituto Estação das Letras, no Rio de Janeiro. A foto original das andorinhas de Évora e o poema Revoada estão no final do livro.
Revoada
Quem sabe hoje
Seja o dia de rever canções
Juntar notas musicais
Perdidas na bagunça
De um quarto de guardados.
Quem sabe hoje
Pássaros retornem à janela
Fechada outrora para balanço.
Quem sabe hoje
A poda seja feita
E o vento sopre de leve
Varrendo as folhas mortas.
Vida, encontro e festa: no vai e vem da floresta
Participei de uma oficina de literatura infantil no Instituto Estação das Letras, ministrada pela escritora Ninfa Parreiras, especialista em literatura para crianças e jovens. Depois de muitas aulas teóricas, passamos para as práticas. Na primeira aula, o tema foi floresta. De pronto, tive a ideia de uma floresta com muitos animais a quem concedi vida própria. “Quando o Sol surgiu entre as copas das árvores, quem era do dia acordou, quem era da noite, adormeceu.” Nessa primeira história, aparece Lili, uma serpente encantadora e esperta. Na aula seguinte, outro tema. Mas eu só conseguia escrever sobre a floresta e seus habitantes. Falei com a Ninfa que a floresta e a serpente apareceriam sempre. Foi quando ela teve uma ideia: continue, quem sabe sejam os capítulos de um livro? Assim, aconteceu: oito histórias e um livro ilustrado por Mariana Velozo em um lindo cenário: a floresta da Boa Vida. Foi lançado em 2018, pela Editora Penalux, no Museu da República, no Rio de Janeiro.
Envelope violeta
E veio a pandemia, em 2020, o isolamento social, amigos doentes, poetas queridos partindo e familiares também. Eu já havia iniciado um livro de poemas. E mais do que nunca, me juntei às palavras. Com elas, podia conversar sem máscara e tocá-las sem medo. Meus sentimentos se misturaram em um novo livro: Envelope violeta. O lirismo que permeia meus versos se misturou à saudade, ao tempo, à reflexão, ao cotidiano, ao medo, à ilusão, à emoção, à solidão e à esperança. Tudo isso, envolto em metáforas de que tanto gosto e que são, para mim, essenciais na poesia. Em Envelope violeta, não há sofrimento e sim a constatação da realidade. São setenta poemas de temas variados aos quais procuro imprimir um ritmo constante, uma musicalidade. Passadiço, na página 94, é uma homenagem ao grande poeta e amigo Marcus Vinicius Quiroga, que passou para o outro lado.
Sem ao menos saber por que
Deixava para trás a vida.
Envelope violeta, o primeiro poema do livro, foi o último que escrevi e, quando terminei, sabia que esse seria o título. Esse poema remete às cartas e flores que hoje já não se enviam mais.
Envelope Violeta
Reconheço aquele traço,
Aquela caligrafia,
No cartão de aniversário.
Afago as flores
Borrifadas de perfume.
São reais e pulsam as palavras,
Os votos, o abraço,
As reticências…
Ah! Tenho certeza:
A eternidade mora
Em um envelope
Violeta.
Finalmente, no último poema, Saideira, homenageio alguns poetas preferidos de uma maneira leve e divertida.
Saideira
Palavras fogem,
A vista embaça,
O teclado não obedece.
Onde quero pôr um A
Ele dedilha S.
Transformo noites em dias.
Palavras, letras, sinais
Um chão de papel picado.
Tropeço nos is e nos ais.
Mas poeta não desiste.
Me espanto: o verso é forte!
Mas olhando bem de perto,
Eu copiei de Eliot.
Sem sentir, durmo sentada.
Vem Cecília, vem Drummond,
Até Pessoa aparece.
João chega com seu galo
E o meu quarto alvorece.
Abro os olhos, não me encontro
Qual era mesmo o tema?
Melhor concluir o livro
Com este último poema.
Assim, numa mistura de sentimentos, escrevi Envelope violeta. Não houve lançamento presencial nem abraços, apenas a sensação do dever cumprido e a felicidade de ainda estar por aqui. Envelope violeta tem o magnífico prefácio de Tanussi Cardoso, orelhas de Alexandra Vieira de Almeida e quarta capa de Antonio Carlos Secchin. A revisão é de Claudia Manzolillo.
AC: Projetos futuros: o que vem por aí nos próximos meses?
SMM: Estou preparando um livro de contos que já possui um título: Dez contos de reis. Além disso, o próximo livro de poesias já está em andamento. Também pretendo reeditar Doce surpresa.
AC: Para encerrar, pediria que deixasse aqui um poema de sua autoria.
Hora da Ave-Maria
O sino da igreja
Leva embora o dia.
Fica a luz invisível
Das preces.
Bem, é isso. Até a próxima!
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