Raquel Naveira (@naveiraraquel) nasceu em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Formou-se em Direito e em Letras pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Além disso, é Mestra em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo e Doutora em Língua e Literatura Francesas pela Faculdade de Nancy. Deu aulas de Literaturas Brasileira, Latina e Portuguesa. Publicou mais de trinta livros nos gêneros poesia, ensaio, crônica, romance e infantojuvenil. O mais recente é o livro de crônicas poéticas Manacá (editora Penalux). Escreve para várias revistas e jornais como Correio do Estado (MS), Jornal de Letras (RJ), Jornal Linguagem Viva (SP), Jornal da ANE (Brasília/DF) e Jornal “O TREM” (MG). Pertence à Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, à Academia Cristã de Letras de São Paulo, à Academia de Ciências e Letras de Lisboa e ao PEN Clube do Brasil.
Confira abaixo a entrevista exclusiva com a autora que preparamos para você!
ArteCult: Como a Literatura entrou na sua vida?
Raquel Naveira: A minha vocação veio de infância. Antes mesmo de ler ou escrever, eu já sentia que a palavra era o meu ser e estar no mundo. Gostava de ouvir histórias, de cantar as cantigas de roda (emocionava-me com elas) e intuía que os livros possuíam vozes. Li As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, que abriu as portas de minha imaginação para sempre. Os contos dos irmãos Grimm, as histórias das Mil e uma noites, as lendas de Malba Tahan e os relatos da mitologia greco-romana povoaram meu imaginário. Tive um encontro com a poesia na juventude: Castro Alves e os poetas românticos, depois Drummond, Bandeira e Augusto Frederico Schmidt. O processo sempre foi este: ler e escrever. Escreviver. As leituras e a sede de me expressar resultaram numa carreira no magistério, na área de Letras. A poetisa alimentou a professora, e a professora alicerçou com sua formação o trabalho literário da poetisa.
AC: Como é sua rotina de escritora? Escreve todos os dias? Reescreve muito? Mostra para alguém durante o processo?
RN: Sou bastante disciplinada. Procuro abrir clareiras no cotidiano. Sou avessa às compras, aos médicos e aos bancos. Estou sempre lendo e escrevendo. Um dia sem ter escrito nada me parece inútil. Tenho muitas ideias. Coisas que me tocam a sensibilidade: uma palavra, uma cena, um gesto, uma lembrança. Anoto tudo em cadernos grandes e nunca dou conta do que gostaria de escrever. Escrevo à mão, primeiro no caderno e só depois passo para o computador. O computador é ferramenta. Durante o processo da escrita, leio, releio, corto, limo as frases. Sou a crítica de mim mesma. Minha primeira e principal leitora. Misturo momentos de técnica e de emoção. Se me sentir influenciada por aquilo que escrevo e se chorar, o texto estará perfeito.
AC: No seu caso, de onde vem a inspiração?
RN: Li ainda jovem o Cartas a um jovem poeta, de Rainer Maria Rilke, onde ele dizia: “Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever?” Respondi: “Sim, morreria”. É a arte da palavra que me mantém ardente, acesa, atenta, esperançosa, apaixonada. E aí construí minha vida de acordo com essa necessidade. Testemunho o tempo todo essa pressão interior. Essa marca de minha personalidade. Essa minha natureza profunda. E a poesia tem sido a grande companheira, a prece mais sincera, a conexão com o milagre da existência, o esforço, o consolo, o conforto, a eterna busca. É ela que me dá bom ânimo.
AC: O fantasma da página em branco: mito ou verdade? Isso acontece com você? Em caso afirmativo, o que faz para resolver esse problema?
RN: Como já disse, tenho muitas ideias, o que não significa que possa executar, concretizar e dar forma a elas. Na página em branco, a primeira frase é sempre a mais difícil e importante. Se começarmos bem, com uma palavra forte e espontânea, o texto fluirá. Caso isso não aconteça, talvez não passe de uma ideia perdida.
AC: Fale dos livros que já publicou até hoje.
RN: Obedeci à máxima de Horácio em sua Arte Poética: guardei meus poemas por mais de dez anos, antes de publicá-los num livro. No entanto, desde os meus vinte anos, já os publicava no jornal de maior circulação da minha terra na época: o Correio do Estado. Quando veio à lume o Via-Sacra, em 1982, meu primeiro livro de poemas, eu já tinha formado um público leitor. Residindo em Campo Grande, no sul de Mato Grosso, longe do eixo Rio-São Paulo, publiquei por uma gráfica da cidade, independente. Nesse momento, comecei a enviar o livro para escritores, professores e jornalistas (o carteiro é amigo do poeta!) e alcancei uma boa fortuna crítica. O livro seguinte, Fonte Luminosa, foi publicado por Massao Ohno, de São Paulo, um editor de arte que lançou Hilda Hilst , Renata Pallottini e toda uma geração de poetas. O terceiro, Abadia, pela editora Imago, do Rio de Janeiro, foi indicado ao Prêmio Jabuti de Poesia em 1996. Cada livro tem uma história diferente, uma editora, uma porta que se abre, uma trajetória, um destino misterioso. E já são trinta e seis livros publicados ao longo de quarenta anos. Tenho feito excelentes parcerias com casas editoriais importantes do país, como Escrituras, Ibis Libris, Miró, Estação Liberdade e também com a regional Life, entre outras. Os mais recentes, de prosa poética, foram: Leque Aberto e Manacá, pela editora Penalux.
AC: Um livro marcante. Por quê?
RN: Citaria o Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles. Amo romanceiros. Misturar Poesia e História. A História representada não só pelos fatos, mas pelos sentimentos. É um trabalho de imaginação, que exige poder de síntese, surpresa e muita pesquisa. A pesquisa é um campo que me agrada. Estudar, ler, comparar versões, fazer descobertas. E depois, a escrita, unir ideias, tecer os textos, criar monólogos de personagens, sentir seus dramas. O Romanceiro da Inconfidência é marcante. Fantástico. Tiradentes e intelectuais, em plena rebelião. Esse livro me inspirou a escrever os meus próprios romanceiros, a começar por Guerra entre irmãos: poemas inspirados na Guerra do Paraguai. Essa guerra foi o maior conflito americano em terras do sul de Mato Grosso. Ouvi muitos relatos quando era criança na fronteira. Daí vieram outros como: Caraguatá: poemas inspirados na Guerra do Contestado, Sob os cedros do Senhor: poemas inspirados na imigração árabe e armênia em Mato Grosso do Sul, Stella Maia: poemas inspirados na conquista do México pelos espanhóis e Romanceiro de Cabeza de Vaca, o andarilho espanhol que chegou até o Pantanal, chamando-o de Mar de Xaraiés.
AC: Um escritor marcante. Por quê?
RN: Citaria os poetas e escritores portugueses: Camões, Fernando Pessoa, Antero de Quental. Eça de Queiroz e Saramago na prosa. Para ficar com um apenas, elegeria Fernando Pessoa. Sou neta de portugueses que vieram de Figueira da Foz no começo do século XX e fincaram raízes no sul de Mato Grosso. Minha alma ancestral lusitana, unida à minha trajetória de professora de Literatura Portuguesa, me levaram a um processo de criação literária em que escrevi sobre essa temática: personagens, poetas, fatos históricos, o diálogo com os países lusófonos. Reuni esses textos num livro intitulado Poemas portugueses. A dicção portuguesa é densa, rica, vigorosa.
AC: Projetos em andamento: o que vem por aí nos próximos meses?
RN: Gostaria de reunir meus textos sobre a cultura guarani, espalhados por vários livros. Preparando um livro infantil de Arte, juntando texto meu e ilustrações de uma artista plástica de Mato Grosso do Sul.
AC: Entre os seguidores do canal Literatura do Portal ArteCult, muitos são aqueles que escrevem ou que desejam escrever. Que conselho ou dica você poderia dar a eles?
RN: Não há nada melhor do que ser jovem, descobrir uma arte e seguir com ela pela vida afora. Persistir. Dedicar-se a criar uma bagagem cultural. Procurar uma profissão compatível com esse chamado. No meu caso, fui professora de literatura e comunicadora. Amar o ofício e os colegas de ofício. Ser como o Patinho Feio, de Hans Christian Andersen: buscar o autoconhecimento, a verdadeira essência e os que estão conectados com ela.
AC: Para encerrar, pediria que deixasse aqui uma amostra de seu trabalho como autora.
RN: Do meu livro mais recente, Manacá, o texto que lhe dá título:
MANACÁ
Moro numa pequena casa, atrás de um pé de manacá. Essa flor dos barrancos é um pouco louca, pois muda de cor. Nasce branca, depois vai passando para o rosa, o lilás até chegar ao roxo macerado. Extravasa um aroma delicado, de mel sugado por pássaros.
A palavra “manacá”, de lirismo popular, logo nos traz à memória versos rimados em “a”, como naquele poema do ultrarromântico poeta Fagundes Varela (1841-1875): “Pelo jasmim, pelo goivo/ Pelo agreste manacá/ Pelas gotas do sereno/ Nas folhas de gravatá/ Pela coroa de espinhos/ Da flor do maracujá.”
Atravessando a Serra do Mar, em direção à sua fazenda de café em Santos, a pintora Tarsila do Amaral (1886-1973), deve ter visto muitos arbustos de manacá eclodindo suas copas como capelas pelas encostas. Representou a árvore num quadro intitulado “Manacá”, de 1927. São formas estranhas, livres, impossíveis de encontrar na natureza. Um tufo de pétalas desiguais, roxas e róseas; montanhas cor de lavanda ao fundo; uma base compacta de cactos verdes e rombudos. Há uma fina sensualidade nessas tonalidades místicas. E a mais pura brasilidade.
O poeta Mário de Andrade (1893-1945), figura central da vanguarda de São Paulo, compôs letra e música do “Hino do grupo do gambá”, cantada pelos modernistas no início de suas reuniões. Esse hino foi depois gravado por Marcelo Tápia e o grupo Colher de Pau, em 2009. Mário chama os homens de “gambás”: “Guilherme de Almeida (1890-1969) é gambá”, “Sérgio Milliet da Costa e Silva (1898-1966) é gambá”, “Oswald de Andrade (1890-1954) é gambá” e as mulheres, por sua vez, são “manacá”: “Tarsila do Amaral é manacá”, “Olívia Penteado (1872-1934) é manacá” e, excluída, mas sempre lembrada, a pintora Anita Malfatti (1889-1964), também seria “manacá”.
Imagino uma reunião desse grupo fascinante na casa da colina de Guilherme de Almeida. Todos recostados nos sofás de palhinha cobertos de almofadas coloridas, entre objetos orientais e copos de cristal. O piano aberto com suas teclas pretas e brancas, pronto para ser tocado. A bela Tarsila do Amaral, de cabelos puxados e longos brincos, comenta sobre a antropofagia nas artes plásticas, sobre a necessidade de digerir as influências estrangeiras como no ritual canibal em que se devora o inimigo com a crença de poder absorver suas qualidades. O poeta Oswald de Andrade, seu companheiro à época, detalha como dera o nome de Abaporu, que significa em tupi “homem que come carne humana” ao intrigante quadro de Tarsila. Mário de Andrade, rindo-se do casal “tarsiwald”, lê alguns poemas de seu polêmico Pauliceia Desvairada. Guilherme de Almeida, compenetrado, ajuda a mulher, Baby, a servir licor aos convivas. Mostra um número da revista Klaxon e defende a liberdade de ritmo no sentir, no pensar, no dizer. Aponta um anúncio do chocolate Lacta, afirmando que a publicidade utiliza a linguagem da poesia e os grafismos para seduzir o consumidor. O pintor e crítico de arte, Sérgio Milliet, fala um português arrastado, com sotaque francês, pois residira tantos anos na neutra Suíça, fugindo das agruras da Primeira Guerra Mundial. Sérgio é o homem-ponte entre a cultura sedimentada da Europa e a busca de uma identidade brasileira e única. É preciso contar ao grupo sobre o valor de versos descontínuos, independentes, sobre os cubistas, os futuristas e as fases da pintura do genial Picasso. Dona Olívia Penteado, elegante, chega com novidades sobre um grande projeto: a criação de um Salão de Arte Moderna. Ela conseguirá os recursos. Quer os quadros de sua amiga Anita Malfatti em destaque: o “Homem Amarelo”, “O Farol”, “A Estudante Russa”, juntos, numa ala nobre do salão. Todos aplaudem. Há que se apoiar Anita, que está deprimida e triste, depois de duramente criticada por Monteiro Lobato, no artigo “Paranoia ou Mistificação”. O grupo se une, se aproxima, se confraterniza, enquanto fotografo a cena em minhas retinas.
Dá para compreender. O gambá é uma espécie de rato solitário, noturno, crepuscular. Temido e dramático. Faz-se de morto quando as coisas se tornam perigosas. O manacá é planta de cerrado, de terra árida, de beleza primitiva. O grupo modernista é refinado e caipira; verde, amarelo-mamão e roxo.
Moro distante, numa pequena casa no sul de Mato Grosso. Daqui, relembro dos amigos de São Paulo, vivos e mortos, enquanto a noite desce com suas estrelas sobre o pé de manacá.
Bem, é isso. Até a próxima!
Não deixe de ver também:
AC Encontros Literários tem curadoria e apresentação (lives) de César Manzolillo (@cesarmanzolillo).
Raquel,
Você é brilhante. Mas o que gostei mesmo é da informação de que pretende juntar, numa única obra, os contos guaranis. Serei o primeiro a ler o livro. Como jornalista da Folha de São Paulo, cobri cinco anos a Funai, e viajei por este país visitando grupo indígenas. Depois escrevi um livro documental sobre o processo de integração que se desenvolvia por meio dos Jogos Indígenas (não foi publicado, está na editora do Senado), no qual procurei tentar conceituar o que seria “A Celebração nos Jogos Indígenas” . Como artigo, o trabalho foi publicado na nossa revista (ALB), número 3ou 4. A minha tese de doutorado, que está sendo publicada, em terceira edição, pela editora Dialética, fala das matrizes e matizes da “Americanidade…” como um patronímico regional. Suas origens estariam fincadas nas culturas indígenas, e não nas transmigradas para o continente. Somos, parece, convergentes, com a diferença de você escrever com mais graça e, eu, jornalista, escrever com pouca graça, e até sem…. Meus parabéns, gosto de transitar pela leveza dos seus textos.