Jozias Benedicto (@joziasbenedicto) é escritor e artista visual. Nasceu em São Luiz do Maranhão, vive e trabalha no Rio de Janeiro. Suas videoinstalações, performances e pinturas, que unem literatura e artes visuais, foram apresentadas em mostras individuais e em exposições como a XVI Bienal de São Paulo e o Salão Nacional de Artes Plásticas.
Seu primeiro livro de contos, Estranhas criaturas noturnas, foi finalista do Concurso SESC de Literatura 2012/2013. Como não aprender a nadar conquistou o Prêmio de Literatura do Governo de Minas Gerais 2014 (Contos) e o Prêmio Moacyr Scliar 2019, da UBE-RJ. Recebeu premiações da Fundação Cultural do Pará (2018) por Um livro quase vermelho e da Fundação Cultural do Maranhão (2018) por Aqui até o céu escreve ficção, editado pela Patuá em 2020. Publicou dois livros de poesia, Erotiscências & embustes (2019) e A ópera náufraga (2020), ambos pela editora Urutau. Em 2022, publica o romance Doze noites e seus trabalhos, pela editora Hecatombe.
Confira abaixo a entrevista exclusiva que preparamos pra você.
ArteCult: Como a Literatura entrou na sua vida?
Jozias Benedicto: Sou um leitor compulsivo, desde criança. A leitura me levou naturalmente a escrever, mas escrevia “para mim”, concentrando nas artes visuais o meu trabalho criativo. Precisei chegar à maturidade para acreditar na minha escrita. Foi quando comecei a participar de oficinas literárias, a ter coragem de expor meus textos, de me expor. Nesse processo, foi fundamental a oficina de contos com o escritor Luiz Ruffato, na Estação das Letras, aqui no Rio. E também o convite para trabalhar em uma editora alternativa, a Apicuri, onde atuei como editor de livros de arte e de ficção. Meu primeiro livro de contos, o Estranhas criaturas noturnas foi finalista do Prêmio SESC de Literatura, o que me deu mais segurança para publicá-lo, em 2013. Eu tinha medo da “maldição do segundo livro”, mas isso não me bloqueou. Escrevi o Como não aprender a nadar, que recebeu o prêmio do Governo de Minas Gerais. A partir daí não parei mais.
AC: Como é sua rotina de escritor? Escreve todos os dias? Reescreve muito? Mostra para alguém durante o processo?
JB: Não tenho uma rotina muito rígida. Em geral acordo cedo, mas não rendo quase nada pela manhã, tenho que me encharcar de café antes de conseguir pensar. O trabalho começa a fluir melhor à tarde e à noite, é o horário em que me sento ao computador para escrever, sem hora para acabar. Posso dizer que escrevo todos os dias, mesmo que um pouquinho só, revisando textos, retomando textos inacabados. E também estou sempre fazendo anotações e registros em pedaços de papel, no celular, já que as ideias vêm nos momentos mais inesperados. Minha primeira escrita de um texto vem quase sempre de um jorro só, como se eu estivesse “possuído” por uma entidade. Mas isso é só a primeira versão, a partir daí começam as muitas revisões, as reestruturações, o jogar fora, o guardar para depois, o reescrever, versão em cima de versão. Muitas vezes, depois de um texto pronto, entregue, até impresso, eu ainda o reescrevo, mesmo que só mentalmente, mesmo que não dê mais para modificá-lo. Que não me ouçam, mas funciono muito bem sob pressão. Um prazo a cumprir é angustiante, porém me obriga a arranjar forças para fazer viradas, deixando de lado as outras obrigações e mergulhando na escrita. É como uma maratona – chego a ficar 10 ou 12 horas trabalhando direto, todos os dias, até encerrar um projeto. É extenuante, abandono os outros interesses e responsabilidades, minha vida fica uma bagunça e me culpo por não saber organizar melhor meu tempo, mas é como eu funciono melhor, e nada se compara à alegria de, com o trabalho finalizado, respirar fundo, abrir um vinho, ler e ter a sensação de que aquele texto sempre esteve escrito, eu apenas o trouxe ao mundo. Nunca mostro o que escrevo, principalmente no início do processo. Quando já tenho uma versão bem estruturada, quase pronta, de um trabalho mais extenso – um livro, um roteiro – às vezes mostro para alguns poucos leitores prévios em que confio, dois ou três, mas isso não é uma regra. Nas oficinas, os textos eram lidos e discutidos exaustivamente com o grupo, porém depois que parei de fazer oficinas me tornei meio um lobo solitário. Minha experiência como leitor e editor de textos alheios me ajuda muito no trabalho de revisar e reescrever, mas tenho saudades das discussões acaloradas nas oficinas.
AC: No seu caso, de onde vem a inspiração?
JB: Sou bom ouvinte, em toda minha vida colecionei histórias que me contavam ou que eu “roubava” – de colegas de trabalho, de pessoas sentadas perto de mim no ônibus, no metrô, de porteiros (sabem de todas as histórias), de motoristas de táxi ou de uber, de notícias de jornal – as nada espetaculares, as mais banais. Trechos de filmes, pedaços de leituras, de músicas. Para mim, a ficção é uma fonte inesgotável de ficção. E os sonhos, muitos textos meus foram escritos enquanto eu dormia. Estes pedaços de histórias, de notícias, de imagens de filmes, de livros, de sonhos, são o que deflagra o processo. A inspiração se torna efetivamente um texto quando aparece nítida na minha cabeça uma situação, um personagem, um cenário. A partir daí, a escrita flui, os personagens vivem, os enredos se criam e se modificam, e minha tarefa é “psicografar” estes textos vivos no teatrinho de minha imaginação.
AC: O fantasma da página em branco: mito ou verdade? Isso acontece com você? Em caso afirmativo, o que faz para resolver esse problema?
JB: Acho que o fantasma da página em branco afeta a grande maioria dos artistas. No meu caso, é um problema duplo – a página (ou a tela do Word) em branco e também a tela (de pintura) em branco. Em geral consigo vencer este desafio apelando para meus cadernos com anotações, esboços, projetos já iniciados, frases soltas, registros de sonhos – de algum lugar destes muitos cadernos surge, quando menos se espera, alguma ideia. Outra coisa que faço é nunca interromper o fluxo criativo – um projeto concluído deixa em mim um enorme vazio, que logo preencho partindo para outro projeto, nada de ociosidade despreocupada entre um trabalho e o seguinte.
AC: Fale dos livros que já publicou até hoje.
JB: Tenho cinco livros publicados e dois com publicação neste primeiro semestre de 2022. Os de contos formam uma tetralogia, cada livro representa um dos quatro elementos. São eles:
1- Estranhas criaturas noturnas, publicado em 2013 pela Apicuri, foi finalista do Prémio SESC de Literatura 2012/13. É meu livro “ar”, ligado à cor azul, não o azul do céu diurno e sim o índigo profundo da noite, do éter onde trafega a internet e dos loucos encontros entre as criaturas do escuro.
2- Como não aprender a nadar (Apicuri, 2016) recebeu o Prêmio de Literatura do Governo de Minas Gerais 2014 e o Prêmio Moacyr Scliar 2019 (UBE-RJ). É o livro das piscinas, o livro “água”. Nele, utilizo o nadar, o mergulhar, o se afogar e o emergir como metáforas para a busca do conhecimento e do desejo de se renovar e se superar.
3- Aqui até o céu escreve ficção, publicado pela Patuá em 2020, recebeu o prêmio literário 2018 da Fundação Cultural do Maranhão. É meu livro “terra”. Nele, uso minhas memórias, reais ou inventadas, da ilha de São Luiz do Maranhão, onde nasci e onde vivi infância e adolescência. Os contos não se prendem àqueles anos, se ambientam em um arco que vai do início do Século XX até uma distopia em 2961 – mas tudo é a terra, a minha terra.
4- Um livro quase vermelho foi premiado em 2018 pela Fundação Cultural do Pará, que o está publicando, com previsão de lançamento ainda no primeiro semestre de 2022. Um jornalista perde um livro em uma viagem de avião e passa uma vida a procurá-lo. Um grupo de terroristas planeja explodir o Teatro da Ópera de Manaus, protestando contra uma ópera sobre o massacre do Eldorado. Um livro do fogo, das paixões, do barroco, do sangue, da revolta, do destruir para reconstruir, sob o signo das chamas e de seu arrebatamento.
Tenho também dois livros de poesia, ambos publicados pela editora Urutau, Erotiscências & embustes (2019), que escrevi a partir de poemas perdidos em um incêndio em minha casa em 2015 e que tem um clima mais irônico que erótico; e A ópera náufraga (2020), narrativa edipiana e operística sobre uma viagem pelo Atlântico e pelo rio Amazonas até o Teatro da Ópera da Manaus, no auge do ciclo da borracha, no início do Século XX. E também neste primeiro semestre de 2022 estou lançando meu primeiro romance, “Doze noites e seus trabalhos”, pela editora Hecatombe, selo político da ditora Urutau. É a história de um casal que contrata um garoto de programa para, juntos, encenarem Os doze trabalhos de Hércules, em performances exacerbadamente eróticas, com todo tipo de fetiches e perversões. O livro faz referência a Sade e a seu Os 120 dias de Sodoma, mas também se apropria de conceitos bem atuais como a Sociedade de Espetáculo e o farmacopornocapitalismo. A pré-venda se encerrou no final de fevereiro, com sucesso, e em breve estaremos fazendo um lançamento, que espero possa ser presencial. Este livro é o primeiro de um projeto mais longo, uma série de romances sobre sexualidades transgressoras no Brasil entre 1959 e 2020.
AC: Um livro marcante. Por quê?
JB: Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus. Um livro que li no início da adolescência e que me marcou muito. Certamente foi uma das leituras que me abriu a cabeça para ver que havia um mundo fora da vida protegida de um garoto branco de classe média em meados do século XX e que me fez ter a vontade de lutar para mudar aquela realidade. Reli no ano passado e constato com alegria que a escrita resiste, é um grande livro. Mas também constato com tristeza que a realidade escancarada pela autora em seus diários permanece, na verdade piorou muito. Na minha primeira leitura, o livro transmitia, para um jovem como eu, descobrindo o mundo, a esperança de mudar aquela realidade. Hoje, vemos que o Brasil andou para trás, não resolveu aqueles problemas e criou muitos e muitos outros, e que aquela visão de esperança de minha juventude talvez tenha se tornado bem mais distante.
AC: Um escritor marcante. Por quê?
JB: Poderia citar não um só, mas alguns, que leio e releio: Clarice Lispector, Luiz Ruffato, Paulo Scott, Rubem Fonseca, João Gilberto Noll, Hilda Hilst, Bernardo Carvalho, Carola Saavedra, Sérgio Sant’Anna, Lygia Fagundes Telles. Mas fico com Elvira Vigna. Não a conhecei pessoalmente, mas mantivemos uma amizade “espistolar”, por e-mail, por alguns anos, até sua morte em 2017. Uma escritora forte, verdadeira, uma pessoa incrível, generosa, autêntica. Reler os livros de Elvira é ter lições renovadas de como contar histórias.
AC: Além de escritor, você também é artista visual. Como concilia as duas atividades?
JB: Meu trabalho em artes visuais se baseia na palavra, em especial a palavra poética – vídeos, instalações, performances e também pinturas, nos quais “a palavra é trama e urdidura”. Houve um período em que eu tentei manter estas duas atividades compartimentalizadas, como universos separados, mas aos poucos percebi que são dois lados de minha expressão que se complementam e passei a radicalizar a proposta de junção destes dois campos da arte, o visual e o literário. Um exemplo disso é a minha série de performances “Escrita automática”, nas quais escrevo poemas, em público e de improviso, usando uma máquina de escrever antiga, ou pintando-os em escrita invertida em pequenas telas.
AC: Projetos em andamento: o que vem por aí nos próximos meses?
JB: No primeiro semestre ano de 2022, tenho o lançamento dos meus livros Doze noites e seus trabalhos e Um livro quase vermelho. E já estou trabalhando para lançar, no início do segundo semestre, pela editora Urutau, o livro Relatos da minúscula morte alada, com os poemas que escrevi em 2020, nos primeiros meses da pandemia e que foi semifinalista do Prêmio Literatura & Fechadura 2020. Em paralelo, estou trabalhando em um romance situado no período de 1959 a 1965 e que será o segundo livro do projeto sobre as sexualidades transgressoras. Outro projeto é a segunda temporada de Falência!, websérie que escrevi e que foi produzida em 2021 com os recursos da lei Aldir Blanc e com o trabalho criativo do Grupo de Teatro Cordão Encarnado. Tem um tom de farsa e foi premonitória, o que escrevi sobre negacionismo, superfaturamentos com vacinas e outras mazelas foi exposto para todo o Brasil pela CPI da covid. Estamos tentando recursos nos editais para uma segunda temporada, que pretende apontar, sempre com humor e ironia, vários outros pontos desta falência moral do nosso país.
AC: Entre os seguidores do canal de Literatura do Portal ArteCult, muitos são aqueles que escrevem ou que desejam escrever. Que conselho ou dica você poderia dar a eles?
JB: O primeiro conselho é ler, ler muito. Só com muita leitura o escritor vai formando seu repertório e vai criando sua própria voz. Também: escreva, escreva muito. Se proponha exercícios de escrita, guarde tudo, reescreva, conte a mesma história de duas, três maneiras diferentes, com personagens diferentes. Leve um personagem que você criou até um outro tempo, um outro espaço, um outro enredo. Se possível, participe de oficinas, mas não leve a ferro e fogo tudo que você ouve nas oficinas. Ouça a sua voz interior, mas principalmente ouça a voz de seus personagens, deixe que eles falem por você.
Bem, é isso. Até a próxima!
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AC Encontros Literários tem curadoria e apresentação (lives) de César Manzolillo (@cesarmanzolillo).