Para a estreia da nova seção AC – ENCONTROS LITERÁRIOS do nosso canal de Literatura, convidamos o escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras Antônio Torres. Depois de ler nossa conversa, tenho certeza de que você vai concordar com a gente: não poderia ter havido escolha mais acertada.
ArteCult: Como a Literatura entrou na sua vida?
Antônio Torres: Foi nas escolas da minha infância, num remoto sertão baiano, agrário e ágrafo, a começar quando lá chegou uma professora chamada Serafina, trazendo um método de ensino que se tornaria mágico: a leitura em voz alta de poemas e a cantoria de hinos patrióticos, tudo a descer redondamente aos ouvidos de um menino que iria dar asas à imaginação por margens plácidas, berços esplêndidos, brados retumbantes (Criança, não verás país nenhum como este…), pendões da esperança, símbolos augustos da paz, dessa terra querida que é o nosso Brasil, oh, quão risonha e franca era aquela escola, da qual o saudoso dramaturgo Naum Alves de Souza (um paulista de Pirajuí), viria a fazer uma revisão, ao mesmo tempo crítica e nostálgica, na sua memorável Aurora da minha vida. Dois anos depois, chegaria outra professora, Dona Teresa, para inaugurar uma nova escola. Coube a ela me introduzir aos textos em prosa, contidos num livro intitulado Seleta Escolar – uma antologia de contos, crônicas, trechos de romances, como o começo de Iracema, de José de Alencar. Eram páginas de iniciação a um curso intensivo de leitura e escrita, pois tínhamos de fazer cópia do que acabáramos de ler, que depois a professora ditava, para que escrevêssemos tudo de novo, e daí passávamos aos exercícios de redação, com temas ligados à nossa experiência cotidiana. Não tenho dúvidas de que aquela espécie de oficina literária, como parte integral de um processo de alfabetização, me deu o tom das palavras e sua régua e compasso, como canta Gilberto Gil.
AC: Você nasceu em Junco (hoje Sátiro Dias), morou em Alagoinhas e Salvador, mas há muito tempo deixou seu estado natal. O que da Bahia ainda existe dentro de você?
AT: Os falares antigos, com suas inolvidáveis expressões arcaicas, como, por exemplo, quando uma velha se dirigia a um menino chamando-o de mô fio; o cheiro das flores que eu ia buscar nas casas das roças para minhas irmãs levarem para as novenas da igreja, no mês de maio; a missa, em latim, que eu ajudava o padre Edson a celebrar; as cartas que os apaixonados me pediam para ajudá-los a escrever; as fogueiras de Santo Antônio, São João e São Pedro; as histórias contadas ao pé de um fogão para espantar o medo de noite; os sonhos com uma cidade. Isto para dizer que não vim da Bahia do vatapá e do canjerê, da festa no mar – esta eu só fui descobrir nos livros de Jorge Amado e na música de Dorival Caymmi, antes de ir lá.
AC: Sei que você teve uma passagem por Portugal. Como foi essa experiência no exterior?
AT: Ó Portugal, se fosses só três sílabas, / linda vista para o mar …
Cheguei lá num fim de uma esplêndida tarde do verão de 1965. Ainda ia pelos 24 anos e levava uma carta no bolso que me garantia um emprego de redator numa agência de publicidade de Lisboa. Mas estava mesmo era em busca de experiência para escrever um romance, cujo título me veio na manhã seguinte, ao engraxar os sapatos na calçada em frente ao Café de Londres, na praça de mesmo nome, observando os passantes. De cara me bateu a ideia: Os homens dos pés redondos. Que eu só viria a começar a escrever no regresso ao Brasil – ou seja, a São Paulo – três anos depois, embora o meu primeiro romance a ser publicado tenha sido Um cão uivando para a Lua, escrito no Rio de Janeiro, há meio século, ufa! Voltando aos lusos pagos, eu iria achar que tinha ganhado a viagem naquele primeiro dia mesmo, ao conhecer um colega de ofício (publicitário) e que era um brilhante poeta, chamado Alexandre O’Neill, o autor dos versos citados no começo desta resposta, que descrevia o Portugal daquele tempo, em plena era salazarista, como uma feira cabisbaixa – e que se tornaria o meu tutor literário e um amigo de toda a vida. Resumo da história: o meu período português foi enriquecido com uma temporada no Porto, e muito ir e vir Europa adentro. Numa ida a Paris, no frio de janeiro de 1967, dei uma chegada ao Café de Flore, para me aquecer um pouco, e ver se os fantasmas de Scott Fitzgerald e Hemingway ainda estavam lá. Afinal, Paris tinha sido uma festa para alguns dos meus santos de cabeceira, mas, quando cheguei ao Flore, Boris Vian não estava à mesa com Simone e Jean-Paul, que não haviam aparecido, naquele dia. A melhor cena daquele bordejo, porém, foi protagonizada por um taxista, ao perguntar de onde eu era. Ao ouvir a palavra Brasil, soltou o volante e começou a bater nele, aos berros: Brésil! Brésil! Brésil! Pelé! Pelé! Depois, se recompôs, em tom lamentoso: Mas o que isso me adianta? Você é brasileiro, mas não me trouxe o sol! E assim foi se fazendo o romancista que ora lhe fala: ao andar.
AC: Você é casado com Sonia Torres, doutora em Literatura Comparada. Conta pra gente: na casa de vocês, rolam altos papos literários?
AT: Sonia me deixou mais antenado com correntes às quais eu não me ligava, como a ficção científica, e a das distopias e diásporas. Agora, ela me chama a atenção para a literatura surgida no âmbito das ciências ambientais e das geociências, de onde se origina o conceito de Antropoceno. Vivendo e aprendendo – a ler!
AC: Por falar em papos literários, como você avalia a experiência como professor de oficinas literárias?
AT: Quando aceitei o convite do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro para desenvolver ali um laboratório de textos, entrei em pânico, por não saber o que iria fazer. Até me lembrar das professoras da minha infância e… Eureca! Leituras em voz alta e passar temas para desenvolvimento de escritas criativas, em prosa e verso, dependendo das aptidões de cada participante. Deu certo. Tanto que, mais tarde, vim a ser convidado pela Uerj, por intermédio da professora Terezinha Barbieri, para passar um ano letivo no Projeto Escritor Visitante, pelo qual já haviam passado grandes autores, como João Gilberto Noll e Sérgio Sant’Anna. Dessa vez me veio outra preocupação: como eu não havia feito um curso universitário, o que ia fazer naquela universidade? Foi com essa pergunta na cabeça que cheguei ao auditório onde faria a aula inaugural do projeto, naquele ano de 1999, e que estava lotado. A animação da plateia me contagiou, a ponto de sintetizar o meu método de trabalho assim: “Leiam os seus textos em voz alta e morram de vergonha. Ou… aguardem o aplauso”. Resultado: acabei ficando 6 anos na Uerj, nos campos do Maracanã, da Faculdade de Formação de Professores, em São Gonçalo, e na Faculdade de Educação da Baixada Fluminense, em Duque de Caxias. Depois disso, ao fazer uma oficina de curta duração numa instituição que cobrava por ela, quebrei a cara. Porque boa parte da turma queria o troco do que havia sido pago pelo curso, ou seja, esperavam-se ali respostas objetivas para questões que eu tratava subjetivamente, por achar que escrever não é nenhuma operação matemática. E requer tempo. Coube ao público da Casa do Saber e da Emerj – Escola de Magistratura –, no Rio; do Sesc, na Bahia e em Santa Catarina; da Biblioteca Pública do Paraná etc. compensar a frustração sofrida naquela experiência desastrada, onde, porém, conheci o saxofonista e escritor Rodolfo Novaes, que viria a dar uma sonoríssima contribuição a um capítulo intitulado “Enigmas”, do meu romance recém-publicado, Querida Cidade. Conclusão: nessas oficinas, aprendi mais do que ensinei.
AC: Como é ser considerado pela crítica revelação do ano aos 32 anos de idade?
AT: Foi uma grata surpresa. O impacto causado pelo meu primeiro romance, Um cão uivando para a Lua, me deu pilha para seguir em frente. Tudo começou com uma resenha de Aguinaldo Silva, na qual o descrevia como uma “feliz estreia”. E cá estou, de romance novo, o 12º. – Querida Cidade –, pronto para comemorar meio século de literatura, com um inenarrável sentimento de gratidão à crítica literária, aos editores, leitores, tradutores e a todas as irmãs e todos os irmãos de criação. Sim, sim: viva o(a) escritor(a) brasileiro(a)!
AC: Você tem livros lançados em diversos países, de Estados Unidos e Argentina a França e Itália, passando também por Croácia, Paquistão e Vietnã. A carreira internacional, como vai?
AT: Meu saudoso amigo Carlos Heitor Cony escreveu uma vez que o que a maioria de nós consegue no exterior é um “sucesso de estima”. Algo prestigioso, mas que não chega a representar uma conquista de mercado. As exceções são Jorge Amado, no passado, e, hoje, Paulo Coelho, sem dúvida alguma. Mas, para um brasileiro como eu, vindo dos confins do tempo, onde estava destinado a um cabo de enxada em vez de uma caneta, ter romances e contos publicados em 21 países é algo considerável, convenhamos. Quanto a publicações em perspectiva, o que sei é que Querida Cidade será publicado brevemente em Portugal, onde já tenho 5 romances publicados e um conto numa antologia. Pas mal – como se diz em baianês (rsrs).
AC: Apesar de tanto sucesso e de tantas obras lançadas, parece que seu livro de maior repercussão continua sendo Essa Terra. Fale um pouco sobre essa obra, que acabou se tornando o primeiro volume de uma trilogia.
AT: Como já foi dito antes, estreei com um livro que teve grande repercussão, Um cão uivando para a Lua (1972). No embalo, publiquei Os homens dos pés redondos (1973), que não deixou a peteca cair. Em 1976, veio o Essa Terra, cujo histórico rememoro: numa cartada ousada, a Ática, de São Paulo, tendo o grande Jiro Takahashi no comando editorial, fez uma tiragem inicial de trinta mil exemplares, que se esgotaram rapidamente. Hoje, na Record, esse romance já chegou a 32 edições, sendo três delas em formato de bolso. E computa duas edições em francês, três em inglês (uma em hardcover, outra em paperback, e a terceira, saída agora, em e–book), duas em alemão, duas em italiano e mais e mais, de Cuba ao Vietnã e Paquistão. Comprovadamente, o Essa Terra está entre os livros brasileiros de boa fortuna crítica, nisso se incluindo a sequência que ele gerou, com O cachorro e o lobo e Pelo fundo da agulha. Mas permita-me lembrar os desempenhos, até agora, de outros de meus títulos: Meninos, eu conto – 15 edições. Meu querido canibal – 13 edições. Um táxi para Viena d’Áustria – 9 edições. O cachorro e o lobo – 6 edições. O nobre sequestrador – 5 edições. Para um autor que jamais se preocupou em escrever para consumo, esses números chegam a ser surpreendentes.
AC: Condecoração do governo francês, Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, Prêmio Zaffari & Bourbon… em que medida todo esse reconhecimento contribui para a conquista de leitores? Falando em leitores, como o escritor Antônio Torres se relaciona com eles?
AT: Prêmios e honrarias, para um escritor, significam um reconhecimento institucional, cuja divulgação contribui para o seu conhecimento pelo mercado, com reflexos nos que o sustentam – os leitores! Falando neles: para mim, sempre deram o ar das suas graças desde a minha primeira noite de autógrafos, em 14 de novembro de 1972, numa livraria de Copacabana chamada Eldorado. E foram aumentando a partir de um debate contra a censura, em 1975, no Teatro Casa Grande, também no Rio de Janeiro, comandado pelo filólogo Antonio Houaiss, e tendo à mesa os paulistas João Antônio e Ignácio de Loyola Brandão, o mineiro Wander Piroli, o cearense Juarez Barroso, o maranhense José Louzeiro e o baiano aqui. Dali, João Antônio, Loyola e eu passamos a ser convidados para falar em tudo quanto foi canto, a começar por Campos dos Goytacazes. Tantos eram os convites que tivemos que nos separar: lá ia um para Ijuí, em Santa Catarina, outro para São Luís do Maranhão, e o terceiro, para Manaus, onde descobri Márcio Souza, que não demoraria a bombar nacional e internacionalmente com Galvez, o imperador do Acre, Mad Maria etc. De plateia em plateia, acabávamos por conquistar um bom número de leitores. Agora, nesse novo normal em que vivemos, eu os redescubro nas lives. Neste exato momento, acabo de sair de uma, promovida pela Universidade do Estado de Mato Grosso, em Tangará da Serra. As próximas serão de Teixeira de Freitas, no extremo sul da Bahia, e de Petrolina, Pernambuco, lá na beira do São Francisco. E assim me vou, como nos velhos tempos de estrada, só que sem precisar sair de casa. Ah, mas que saudades que eu tenho da aurora da minha vida de escritor, no corpo a corpo com o leitor!
AC: Em 2014, você tomou posse na Academia Brasileira de Letras. Que tal a vida de acadêmico?
AT: É muito enriquecedora, pelo convívio com tantos luminares da cultura brasileira e também pela agenda da Casa de Machado de Assis, que é intensa. Mesmo nesse tempo de isolamento, a ABL tem atuado bastante, ainda que virtualmente, como pode ser visto no seu site. Mas a volta às atividades presenciais já está prevista para finais de outubro deste 2021, com todos os cuidados sanitários que o momento requer. Em síntese: trabalha-se muito naquela casa.
AC: Você escreve romances, contos, crônicas, literatura infantil…. Ainda pretende se arriscar em algum outro gênero?
AT: Nos meus anos mais vulneráveis e juvenis, queria mesmo era ser poeta. Sem engenho e arte para escrever um poema, seguirei batucando na prosa de sempre.
AC: Seu mais recente lançamento é o romance Querida Cidade (Record, 2021). Fale um pouco sobre ele.
AT: Querida Cidade é o meu 12º. romance, escrito ao longo de 12 anos. Nasceu de um sonho, muito bem interpretado na sua capa pelo artista gráfico Leonardo Iaccarino, salve ele! O que digo mais? Que o sonho resultou numa história cheia de histórias, bem brasileiras. E do mundo.
AC: Entre os seguidores do canal de Literatura do Portal ArteCult, muitos são aqueles que escrevem ou que desejam escrever. Que conselho ou dica você poderia dar a eles?
AT: Como sou do time que acha que a criação literária depende unicamente de 1% de inspiração e 99% de transpiração, acrescento o seguinte: Escrever não é fácil. Mas se fosse, que graça teria?
E então, agora que você já leu a entrevista, me diga: eu tinha ou não razão?
Até a próxima!
Atenção. Não deixe de ver nossa live com ANTÔNIO TORRES em:
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