Christovam de Chevalier é poeta, jornalista e agente literário. Lançou quatro livros de poesia e é autor da instalação Marulhos, apresentada no Centro Cultural Oi Futuro (2019). Tem poemas publicados em diversas revistas literárias e na antologia É agora como nunca, organizada por Adriana Calcanhotto e editada no Brasil e em Portugal.
Confira abaixo a entrevista exclusiva com o autor.
ArteCult: Como a Literatura entrou na sua vida?
Christovam de Chevalier: A leitura é um hábito que me acompanha desde a infância. Agora, a poesia despertou meu interesse na adolescência, e dois nomes foram responsáveis por isso. Ali pelos anos 1990, me interessei pela discografia da Maria Bethânia, a ponto de pedir emprestados discos aos pais dos meus amigos. Foi através dos seus LPs, em especial o Rosa dos ventos e o Pássaro da manhã, que cheguei à poesia do Fernando Pessoa e à literatura da Clarice Lispector. Sei de cor até hoje textos gravados no Pássaro da manhã. Quem me mostrou que a poesia poderia ser uma forma de me expressar foi o Ferreira Gullar. Foi numa aula de Literatura no colégio que conheci o poema “Quem matou Aparecida”. Fiquei tão fascinado que, ao chegar em casa, perguntei à minha mãe (a jornalista Scarlet Moon) se ela tinha algum livro dele. Para minha sorte, ela me emprestou uma edição que reunia a poesia do Gullar até então. Minha mãe era virginiana e não emprestava livros para não deixar a estante com lacunas (risos), mas ela acabou me emprestando. E aquele poeta ganhou para mim uma importância que perdura até hoje.
AC: Você lançou?Inventário de esperanças e outros poemas?recentemente. De que trata o livro e como surgiu a ideia para escrevê-lo?
CC: O livro reúne poemas provocados por todas essas transformações nas nossas vidas provocadas pela pandemia da covid 19. O vírus se faz presente em muitos dos textos. Quando não é o assunto principal, aparece de forma subliminar. Há poemas sobre perdas de amigos e de pessoas que são referências, como o Aldir Blanc. A internação do Marcus Vinicius Quiroga inspirou o poema “Visita imaginária ao poeta”. O texto surgiu quando ele ainda estava vivo e o mantive como ele me aconteceu. Já a perda do Jorge Salomão provocou “Adeus ao amigo poeta”, texto cujo resultado me deixa muito orgulhoso. Há também textos sobre as queimadas que destruíram parte do Pantanal (“A fúria do fogo”) e um sobre intolerância, cuja epígrafe é aquela frase do George Floyd, “I can’t breathe”. Há uma seção com 11 poemas sobre artistas circenses. Foi a maneira que encontrei para louvar a classe artística, tão vilipendiada por esse (des)governo. Os artistas mostraram-se primordiais durante o tempo em que ficamos confinados.
AC: Seu primeiro livro (Um livro sem título) é de 1998. O segundo (No escuro da noite em claro) é de 2016. Por que esse hiato tão grande entre um e outro?
CC: Eu tinha 22 anos quando lancei Um livro sem título. Estava na faculdade e morava ainda na casa da minha mãe. Era um adulto com pouca experiência de vida. Meus primeiros poemas eram muito verborrágicos, e isso passou a me incomodar. Precisei desse tempo para encontrar o tom da minha poesia. Uma qualidade que busco, por exemplo, é a precisão. Um poema pode ser longo, o que não significa verborrágico. Ele tem de ser preciso. Você pega, por exemplo, a poesia do Cacaso, que escreveu textos curtíssimos e outros mais longos, e a precisão está lá, em cada um deles. A poesia precisa que o poeta tenha alguma experiência de vida. Eu me dei esse tempo e, vendo minha poesia hoje, vejo que essa escolha foi acertada.
AC: No seu caso, como nasce um poema? E um livro de poemas?
CC: Depois dos 40 anos, passei a me dedicar à escrita com mais afinco. Todo dia, tiro um tempo – uma horinha que seja – para trabalhar num texto, seja de poesia ou de prosa. Não penso no livro como um “saco de gatos”. Os textos nele inseridos precisam conversar entre eles. Acho necessária essa interlocução. No caso dos poemas, eu os agrupo por temas. A ideia do livro começa a ganhar forma a partir do momento em que se estabelece uma relação entre esses temas.
AC: De médico, poeta e louco todos nós temos um pouco. Até que ponto essa frase é verdadeira?
CC: A frase não poderia ser mais verdadeira. Minha mãe lutou contra uma doença degenerativa que a tirou de cena quando ela tinha 62 anos. Ver minha mãe definhando despertou em mim o desejo de estudar medicina. A vontade era a de conhecer o funcionamento do corpo humano. Essa vontade perdeu força, mas me acompanhou nos primeiros anos após a perda da minha mãe. Eu daria um péssimo cirurgião, pois sou gago das mãos, mas acho que daria um clínico legal.
AC: Além de poeta, você também é jornalista. Qual desses dois lados pulsa mais forte dentro de você?
CC: Costumo brincar que tanto o poeta quanto o jornalista trabalham adoidado, mas que sobra para o jornalista pagar as despesas de ambos. Do ano passado para cá, com a pandemia, ficou puxado para o jornalista. Trabalho hoje com assessoria de imprensa para eventos culturais e, com os teatros e as casas de espetáculos fechados, o trabalho diminuiu muito. Os teatros estão agora abertos, podendo funcionar com lotação máxima, porém muitas das peças não obtiveram permissão para captar patrocínio. Isso é fruto do esvaziamento das políticas de fomento dessa Secretaria de Cultura. De nada adianta reabrir os espaços destinados à Cultura se não houver como ocupá-los.
AC: Acho um pouco curioso quando se referem a alguém como poeta e escritor, como se poetas não fossem escritores. Seja como for, você pensa em se arriscar na prosa algum dia?
CC: Tenho amigos que só conseguem escrever poesia; outros, só prosa. Vejo-me como escritor. Quando vou ao médico ou me hospedo num hotel, coloco na ficha que sou jornalista e escritor. Estava trabalhando nos meus contos quando o Inventário de esperanças tomou a dianteira. Com ele lançado, voltei a dar atenção aos contos. É provável que meu próximo livro não seja de poesia e, com ele, comemore meus 25 anos de carreira. Vamos ver o que o futuro me reserva…
AC: Como lida com o fantasma da página em branco? Isso acontece com você??
CC: A página em branco me instiga muito mais do que assusta. E “desde que o samba é samba é assim”. Não sou um escritor cerebral, como muitos dos meus colegas, que muito elaboram antes de sentar diante do computador. Meu processo é prático, orgânico. Isso vale tanto para a escrita jornalística quanto para a literária. Morro de inveja quando um colega diz que o poema lhe veio todo de uma vez, de supetão. Comigo o processo é racional, ainda que eu não seja um escritor cerebral, no sentido de ficar elaborando muito. Trabalho a partir de uma ideia. Essa ideia pode ser uma simples frase ou um verso. Minha regra é: quer escrever? Então, senta e escreve.
AC: Um livro marcante??E um escritor marcante?
CC: Um livro que me marcou foi Os irmãos Coração de Leão, da Astrid Lindgren, que li na adolescência. Foi a primeira vez que um livro me fez chorar e a primeira vez que, ao terminar a leitura, quis recomeçá-la. Já o escritor da minha vida é Caio Fernando Abreu. Tenho toda a obra dele. Vou confessar um hábito: a cada vez que uma relação amorosa dá chabu, pego o livro que traz suas crônicas e releio sua “Pequenas epifanias”. É um texto que fala lindamente sobre as expectativas colocadas num encontro amoroso e sobre as incompatibilidades que podem existir. Caio era e é foda. Tenho loucura por ele.
AC: Para encerrar, por favor, deixe aqui uma amostra do seu trabalho como autor.
CC: Deixo então um poema que escrevi recentemente. Ele me ocorreu após assistir pela TV aos afegãos se agarrando aos aviões para tentar deixar aquele país, logo que os extremistas tomaram o poder. Aquelas imagens ficaram na minha cabeça, e o jeito de externar a angústia provocada por elas foi através da poesia.
Para além do Amu Dária
a Sahar Ansari e ao povo afegão
Agarrados à lataria da aeronave
homens tentam deixar Cabul.
O risco de cair não é mais grave
do que tentar um norte, um sul.
Precisam abandonar a pátria
antes de o terror os alcançar.
Qualquer vão, ponta ou átrio
é um algo onde se sustentar.
Acima do chão, em suspenso
atados em desafio à gravidade
ao que não é vento, ave, anjo
mas voa alto, rumo à dignidade.
Precisam ir longe dali, ir além
lugar qualquer, alguma parte.
O medo não mais os detêm
nem mesmo o medo da Morte.
Sonham alto, sonham longe
sonham sonhos benfazejos
sonhos alvos, sonham hoje
subir do Amu Dária ao Tejo.
Mas voltam ao chão de Cabul
vencidos pela tal da gravidade.
Caem, como a Morte, do azul
azul que é a cor da liberdade.
Até a próxima!
Atenção: não perca a live com o autor que aconteceu no dia 16/11 :
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Excelente entrevista! Parabéns ao Poeta, ao César, ao ArteCult!