A quem de fato pertence

 

Estive, no mês passado, na minha antiga casa de veraneio, essa que já fora morada, residência, hoje ela pertence a outro dono. Por eu ter que resolver uma questão de cartório, dentre as várias vezes em que lá fui, decidi ir para passar mais tempo. A pessoa que comprou é um camarada de profissão e um amigo próximo, “Márcio, passa a noite lá. A geladeira tá cheia, fica à vontade, se não as coisas estragam”. Aproveitei no máximo o pó de café e alguma manteiga. Ah, e uma dose de cachaça.

Liguei para uma amiga, que aqui, por óbvias questões, não usarei seu nome real. “Isobel, consigo dessa vez tomar aquele café contigo, topa?”. Não demorou muito, ela chegou. A varanda da casa é enorme. Seu filho amava aquela vastidão de espaço e brilho. Dentro da casa, novos quadros, móveis reposicionados, uma infinidade de novos detalhes e nova dimensão. Uma outra alma se compunha dali. Passei a pensar em minha filha, intimamente incomodada com a venda, por ter sido ali onde ela passou sua infância. Na época, a casa tinha muitos cachorros. Dois, em especial, eram os verdadeiros donos daquela imensidão verde de grama e plantação: o Rabão, hoje com uma ex-vizinha dali da rua e renomeado para Marronzinho, pois o cachorro a tirou da depressão, e Menina, que ficou com a mãe de minha filha. Hoje é uma cachorra idosa, recuperando-se de dois AVCs. Seu rosto caído pende para a esquerda. Late fraco e com uma constante rouquidão. É como se clamasse algum passado.

O filho dessa amiga explora a casa, alguns brinquedos que ali ainda estavam, de meu filho, típicos de praia, agora eram alvos do desejo do filho de Isobel. Meu garoto não mais os usaria por não estarem condignos com sua idade e os emprestaria com uma facilidade impressionante. Meu menino é gregário e amistoso. O pequeno se entretém. Minha conversa com Isobel engata. A tarde estava ao gosto matuto das prosas e devaneios bem vindos. Um dado momento, desço para caminhar pela antiga plantação. Ao meio do gramado, um cacto rouba a cena, impávido e lindo. O novo dono da casa me explica, “Era aquele cacto que ficava no telhado. Eu pedi pro menino replantar aí.” E ele estava imponente, sadio, lívido, em harmonia com o resto da plantação.

Esse cacto merece um parágrafo só dele. Realmente, do nada, brotou-se um cacto em cima da casa. A casa é formada por aquelas telhas retas, enormes, de amianto, antigas, em que oito ou dez delas cobram uma casa toda. São cinza e fortíssimas. No entanto, numa parte de uma das telhas, onde havia uma rachadura, surgiu esse cacto, que dava para se ver indo para detrás da casa. Lá estava ele, ereto e apontado para o sol. A casa era um menino displicente. É ele quem hoje adorna o centro da plantação. Antigas pedras brancas que a mãe de minha filha usou para compor um jardinzinho debaixo da escada hoje circulam esse cacto. Estão todos em seus devidos lugares.

Porém, algo mais em especial me chamou a atenção: o pé de acerola. Costumávamos eu e minha filha colher as frutinhas dali. Lembro da primeira vez que ela comeu da fruta, depois de limpada na blusa, e a careta que fez com o gosto azedo e metálico que acerola tem. É uma frutinha ácida. Muito cítrica. Ela, baixinha, ia por baixo, sacola presa no pulso, só colocando as frutas dentro. Tínhamos uma divisão: ela ficava com a parte debaixo, eu com a do meio e os passarinhos com a de cima. Era assim que loteávamos o pé de acerola. Cada um tinha seu espaço, cada um era dono de um pouquinho. Quando estávamos colhendo, os passarinhos ficavam no pé de tangerina ou nos coqueiros, esperando a gente sair. Esses, por sinal, eram só nossos. Só a gente tomava da água de coco. A Menina e o Rabão gostavam de dividir com a gente a carne do coco. Agora, ali, para acompanhar os passarinhos, estava o cacto, que funcionava como um espantalho seco e sem gesto tanto quanto um homem amoroso a espera do acolhimento. Quando se dá do final da tarde, o Sol se indo, Isobel também se segue, com o filho no colo e uma voz firme, bela e acolhedora. Seu tchau é significante. De significados. Eu a acompanho até o carro. Está tarde para tudo.

Vejo que o camarada dono da casa tem uma garrada de cachaça guardada. Dou uma bicada. Reconheço o copo de tantos tempos. Sento-me à cadeira da varanda por volta de umas nove horas da noite. Sem um livro às mãos, resta-me me imaginar escrevendo, vivendo alguma aurora interna, que esquentaria meu coração. Meu olhos se fecham lentamente. Durmo no peso da noite densa, sozinha, sem assobios exóticos de noites atormentadas. Mas ainda me falta algo, um algo, que possa me preencher mais. Vou para dentro, à cama, uma cama de casal, em que de novo dormirei só. Pego dois travesseiros. Um lençol fino. Ventilador a meia velocidade. Entrego-me a um verdadeiro e pleno último contato com a casa.

 

MÁRCIO CALIXTO

 

 

Author

Professor e escritor. Lançou em 2013 seu primeiro romance, A Árvore que Chora Milagres, pela editora Multifoco. Participou do grupo literário Bagatelas, responsável por uma revolução na internet na primeira década do século XXI, e das oficinas literárias de Antônio Torres na UERJ, com quem aprendeu a arte de “rabiscar papel”. Criou junto com amigos da faculdade o Trema Literatura e atualmente comanda o blog Pictorescos. Tem como prática cotidiana escrever uma página e ler dez. Pai de dois filhos, convicto morador do Rio de Janeiro, do bairro de Engenho de Dentro. Um típico suburbano. Mas em seu subúrbio encontrou o Rock e o Heavy Metal. Foi primeiro do desenho e agora é das palavras, com as quais gosta de pintar histórias.

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