
O mundo da música sempre foi machista, isso já sabemos. Segundo a pesquisadora Júlia Ourique, no livro Feminismo na Indústria da Música, lançado este ano pela editora Multifoco, somente 10% do valor arrecadado no Ecad é direcionado às mulheres. É assustador — na verdade, quase impossível de acreditar.

Vozes Negras: série arrebatadora de espetáculos que homenageia divas negras de nossa música
Embora o número seja pequeno, houve um avanço. No mesmo livro, a autora ressalta ainda a baixíssima representatividade de mulheres negras, e já sabemos o porquê. É preciso lembrar que estamos em 2025. E que parta de nós o reconhecimento a Alcione e Elza Soares, que em tempos muito mais penosos não desistiram da profissão.
Mais uma vez, Gustavo Gasparani (veja também aqui nossa entrevista exclusiva com o diretor) acerta na escolha das homenageadas em outro episódio de Vozes Negras (@musicalvozesnegras).
Ao falar de Alcione, a atriz Roberta Ribeiro construiu sua personagem também através de vídeos, estudando os trejeitos da cantora. E bingo: nos conquistou. Cantamos com ela, mergulhamos em um mar de músicas que fazem parte das nossas vidas, das nossas memórias afetivas, traçando pontes entre passado e presente dentro do teatro.
Roberta está segura, atua com majestade e coerência. Sem contar o visagismo: perucas e unhas enormes, tal qual Alcione. Fantástico. A cantora é um marco ontem e hoje. Luta ao lado do povo quando é preciso, defende o Maranhão com unhas e dentes. Alcione é brasileiríssima. Embora o mercado da música seja cruel com as mulheres, ela não desistiu — canta para nós.
“Eu só deito contigo
Porque quando me abraças
Nada disso me importa
Coração abre a porta
Sempre que eu me pergunto
Quando vou te deixar
Me respondo: Nem morta…”
A voz melodiosa que entoa Nem Morta, no feminino, ecoa em nossas lembranças. Não me recordo de um karaokê da vida sem ouvir Alcione. Ela é e sempre será um pouco de nós, mulheres. Carregamos Alcione em nós, e Roberta soube traduzir, sem equívoco, nossa macumbeira predileta.
“Sou uma artista preta e periférica que, aos 40 anos, segue se reinventando, e que acaba de ser indicada pela primeira vez, a um prêmio no teatro nacional. O teatro chegou para mim como uma nova perspectiva dentro da minha arte e da minha carreira, um espaço de transformação onde posso experimentar outras formas de expressão e continuar contando histórias que me atravessam.” (Roberta Ribeiro)
Os figurinos de Alcione podem ser considerados relíquias, pois traduzem exatamente seu tempo e estilo. O rosa da Estação Primeira de Mangueira, defendido com tanto orgulho pela cantora, estava entre as escolhas utilizadas pela atriz.
Os falsetes de Alcione são sensacionais. Roberta entendeu que mergulhar na Marrom era necessário para nos deleitarmos com esse ícone da música brasileira.
Encerro aqui sobre Roberta Ribeiro, que voltará como Margareth Menezes, cantando Faraó. Estou ansiosa, pois na primeira temporada a própria Margareth pediu palmas à atriz.
Agora vamos falar da segunda homenageada: Elza Soares.
Não foi em vão que o importante artista Lázaro Ramos voltou ao teatro para assistir novamente Vozes Negras. Elza foi considerada a voz do milênio — uma voz que trouxe a verdade de uma mulher negra, periférica e pobre. Uma voz marcada por um gemido, aprendido ainda menina, ao equilibrar latas d’água na cabeça para ajudar a mãe a lavar roupas.
Falar de Elza é falar de cada mulher brasileira, defender nossa força e representatividade.
Durante quatro momentos, por mais que o texto estivesse na boca da mediadora Maria Ceiça, o nó na garganta era evidente. E não à toa: falamos de uma atriz negra, que vivenciou um tempo em que atrizes negras não eram indicadas a prêmios, tampouco protagonizavam espetáculos. Como não se emocionar?
Elza é heroína, é potência. Quase uma santa — como a aparição de Nossa Senhora de Fátima a três crianças em Portugal. Elza chega ao palco. Chegou para mim: eu a vi ali.
Taty Aleixo foi a atriz abençoada por Elza. Se não bastasse a potência da voz, ela se transformou em uma verdadeira cópia da singular Elza Soares. Arrebatadora.
Não poderia ser diferente, a vida da jovem atriz é marcada por esforço exaustivo para continuar na profissão, situações onde o racismo, a discriminação entre outras dores chegam, mas quem disse que Taty Aleixo pensa em desistir? Nem morta! Risos.
Em ascensão, Taty acaba de se formar em Artes Cênicas, tem o prêmio APTR em mãos e agora encara Elza. Ao falar sobre esse processo, a atriz destaca o apoio da mãe, Sirlea Aleixo, fundamental na dramatização da canção Guri, que resultou em um momento inesquecível para todos nós.
“Olhar para o passado, ver minha mãe fazendo performance e fomentando a cultura no Jacarezinho, e vê-la hoje sendo indicada ao Prêmio Shell em 2025 como melhor atriz, com sua atuação em Furacão, já me enche de felicidade e me faz acreditar com mais assertividade que avançamos.
Sabemos que mudar não é fácil, mas se consertarmos um pouquinho aqui e ali, o caminho se torna mais fluido. Como diz o conto: “com pouco se faz muito”. É uma honra dar continuidade à nossa história.
Na entrevista para o Roda Viva, Elza comentou que abriu as portas para muita gente, e mesmo não estando aqui em carne e osso, a cada ensaio sinto que ela me guia.
Encerro minha narrativa dizendo que estou feliz por voltar ao passado e continuar o legado de nossa Elza Soares — é, para mim, uma honra imensa. Que meu corpo seja instrumento para continuar dando voz à história de nossa D’Elza Soares.” (Taty Aleixo)
A voz, o corpo e as expressões de Elza pousaram em Taty — como se o espírito de Elza tivesse incorporado nela.
Acredito que futuramente a senhorita Aleixo será uma das grandes atrizes do musical, dependendo, é claro, da entrega dela. Excelência no fazer teatral não lhe falta.
O grito de Elza saiu da garganta de Taty. Entre lágrimas, a diretora musical Claudia Elizeu afirmou que era possível, que a ancestralidade estivesse ali cercando-as. Quem vivenciou sabe.
Vale mencionar nesse projeto a sororidade entre as artistas, todas unidas e apoiando umas as outras, trazendo palavras de conforto e força. Isso também auxilia a construir uma obra relevante, porque não é fácil um espetáculo desse tamanho acontecer tão assertivo sem que as profissionais estejam niveladas e acreditadas.
Incrível é uma criança de nove anos perguntar a atriz se Elza tinha realmente falecido, porque parece que não no espetáculo “Vozes Negras”, diante da aparência da jovem artista, ao menos abalou a minha estrutura.
Um dos momentos mais lindos aconteceu quando Maria Ceiça narrava a trajetória dolorida da cantora enquanto a atriz, em câmera lenta e sob luz vermelha, expressava em cena esse passado. Doeu em nós, mas, ao mesmo tempo, nos fez vibrar. Entendemos, ali, o quanto precisamos resistir como Elza resistiu.
“O Sol ensolará a estrada dela
A Lua alumiará o mar
A vida é bela, o Sol, a estrada amarela
E as ondas, as ondas, as ondas…”
Foi uma culminação de texto e música em altíssimo nível.
Parabéns a Rodrigo França e a Gustavo Gasparani, que souberam narrar com elegância a história para nós.
A saia monumental criada por Wanderley Gomes é um deslumbre, um acontecimento à parte. Como homem negro, quis dar à rainha o seu lugar de visibilidade — e deu. Uma saia imensa cobria a atriz, enquanto o corpo de dança a movimentava por baixo, criando imagens raras no teatro. Para mim, foi como uma coroação, carregada de significado.
Exatamente por isso os premios Aptr, Shell e Ubuntu, chegou as mãos do figurinista.
Elza mulher. Elza, a “carne mais barata do mercado”, que hoje pesa — pesa milhões em indenização para um ex-presidente condenado por racismo recreativo.
Conversei um pouco com a diretora Claudia Elizeu, e juntas não conseguimos entender como esse espetáculo não está rodando o país inteiro. Caramba, estamos falando de músicas que nos constituem. Fazem parte de nossas vidas! Por favor, menos milhões ao que vem de fora e mais milhões às nossas Elzas, Ivones, Clementinas, Alciones — todas essas mulheres brasileiras que cantamos um dia aqui e outro ali. SOMOS BRASILEIROS!
No conjunto, não posso deixar de mencionar a direção assistente de Sueli Guerra, parceira de Gustavo, idealizador e diretor-geral. Esteve o tempo todo ensaiando as atrizes, mantendo as ideias iniciais. Um trabalho bruto, desgastante, mas que nos trouxe um regozijo sem igual. Obrigada, Sueli, por tanto!
Também é preciso destacar o coreógrafo Junior Scapin — escolha certeira de Gustavo — que atua nas escolas de samba como comissão de frente. Ele soube traduzir toda a africanidade nos corpos das candarses que dançam, enquanto a voz poderosa de Vanessa Brown, a mãe de todas elas, ecoava sem limites.
Mais brilhosas que qualquer lantejoula, são elas: Maria Antônia Ibraim, Amanda Rocha, Carolina Carsi, Daniela Dejesus, Jessica Santos, Nanda Santos e Neñega Bharbosa.
Ô ô ô ô… Nessa festa vai ter zoeira
Quilombola é brasileira
Faz kizomba a noite inteira!
Sinopse:
No quarto espetáculo da série musical Vozes Negras – A Força do Canto Feminino, exaltaremos duas divas da nossa canção: Alcione e Elza Soares. As gravadoras bem que tentaram enquadrá-las somente dentro do rótulo de sambistas. Mas sem negar o ritmo que as popularizou, deram a volta no mercado fonográfico e no preconceito, provando que poderiam ir muito além do papel ‘escolhido’ para elas. Criaram uma sonoridade própria, extrapolaram os limites de qualquer rótulo, alcançando uma enorme popularidade. Duas vozes personalíssimas, reconhecidas internacionalmente. No repertório musical, grandes sucessos de Alcione e Elza.
FICHA TÉCNICA
- Idealização e Direção Geral: Gustavo Gasparani
- Dramaturgia e Roteiro Musical: Gustavo Gasparani e Rodrigo França
- Direção Musical e Arranjos: Cláudia Elizeu e Wladimir Pinheiro
- Pesquisa Histórica e Musical: Rodrigo Faour
- Consultoria de Representações Raciais e de Gênero: Deborah Medeiros
- Coreografia: Junior Scapin
- Cenário: Mina Quental
- Figurino: Wanderley Gomes
- Desenho de Luz: Ana Luzia de Simoni
- Desenho de Som: Gabriel D’Angelo e Joyce Santiago
- Visagismo: Mary Santos
- Diretores Assistentes: Marluce Medeiros, Menelick de Carvalho e Sueli Guerra
- Produção de Elenco: Elenco Negro Casting por Mônica Nega e Gabriel Bortolini
- Direção de Produção: Bianca Caruso
- Direção Artística e Produção Geral: Aniela Jordan
- Direção de Negócios e Marketing: Luiz Calainho
SERVIÇO
VOZES NEGRAS – A FORÇA DO CANTO FEMININO
Quando: Temporada de 04/09 a 12/10/2025. De Qui. à Sáb: às 20h00. Dom.: às 19h00
Onde: Teatro Adolpho Bloch – Rua do Russel , 804 – Glória, Rio de Janeiro – RJ
Ingressos: https://www.ingresso.com/espetaculos/vozes-negras
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Paty Lopes (@arteriaingressos). Foto: Divulgação.

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