Preciso dialogar sobre uma descoberta: uma Kombi Corujinha da década de 1960, estacionada, na garagem de meu vizinho. Vocês, queridos, têm noção do que é isso? A bendita tem a famosa placa amarela, que dá ainda mais o ar de antiguidade, de originalidade. Desde a implementação desta placa cinza, opaca, sem graça, que hoje os carros têm – e estou escrevendo em um período em que uma nova mudança se dará em seis meses, a placa Mercosul -, essa Kombi, de cor azul, está ali, ao lado da casa onde resido hoje, fechada, enferrujada, quase totalmente inutilizada, pedindo a ajuda de um amor.
Por que preciso dialogar sobre ela? Como bom menino, fui educado para o carro, para as meninas, para o típico universo masculino. Fugi-me dos futebóis desmesurados e de alguns excessos masculinos, no entanto, conservou-se em mim o amor ao carro. Principalmente ao Fusca. Esse que é o mais icônico de todos os tempos, tido por alguns como o carro mais feio do século XX – algo de que discordo plenamente – sempre me foi o alvo primevo do amor.
Tive um Fusca – algo que voltarei a ter, obviamente, pai de filhos jovens precisa rever prioridades – e sinto saudade de dirigir aquela coisinha desconfortável, insegura, charmosa e delicada. Como um cara grande que sou, no fundo, sempre me imaginei muito mais em uma Kombi. Esse amor ao Fusca, aos carros de minha época de garoto, meu apego ao automóvel em si – já até escrevi para sites especializados em carros – me tornou um antigomobilista, essa apaixonado pela originalidade, por uma placa preta e pelos encontros.
Para os que não conhecem, a placa preta hoje só é oferecida pelo DETRAN para carros com mais de 30 anos e que conservam a originalidade da época de fabricação. Há muitos no Brasil, clubes dos mais diversos, raridades das mais divertidas e inimagináveis. Destaco o evento de Carros Antigos de Araxá, para quem quiser começar a ver a real e estonteante beleza deste universo.
E a Kombi? Onde entra nessa questão? Até aqui, o óbvio, querer um carro antigo. Mas a diversão está em não só conseguir o carro, mas restaurá-lo, trazê-lo de volta à vida, dedicar-se à sua restauração, poder rodar, expor, criar uma sequência de fotos, um livro que demonstra essa dedicação. Por causa da explosão do universo do antigomobilismo, e por ser uma diversão cara – para se ter uma ideia, um Fusca Placa Preta hoje, com nível de restauração ou realmente intacto pelo tempo pode custar o preço de um carro zero quilômetro ou até mais – encontrar essas raridades escondidas tornou-se cada vez mais difícil. Pela questão monetária envolvida, heranças de carros antigos estão hoje em mãos de colecionadores endinheirados, algo que diminui a margem dos mais comuns, que pensam a coleção de dois carros, no máximo. Há vendedores já para este universo, comercializando Opalas, por exemplo, na casa dos R$ 130 mil reais. E há quem compre.
Há uma dessa ao lado de minha casa. No meu vizinho. Deteriorada.
É a Corujinha, a da primeira estilização da Kombi. Herdei de minha vó Nancy a paixão por corujas. Meu curso de Letras a tem como estigma (sim, ambiguidade: a coruja e a minha avó). Eu a tenho tatuada em meu braço: de origem Maori.
Amo Corujas.
E há uma Kombi Corujinha na casa ao lado da minha.
Quando soube, tirei fotos, liguei para meu amigo Marco Simas – com quem divido algumas das mais severas paixões, ele divide comigo essa coluna de literatura – enviei as fotos. Ele também é dono de uma Kombi, linda, estilizada, pronta. Ela já se diverte bem. Eu ainda não. Deu-me a ideia de comprar uma mais nova, menos problemática – em uma primeira estimativa, gastaria uma pequena fortuna para colocar a Corujinha de volta no brilho. Até cheguei a concordar com ele. Tem uma a duas esquinas do local desta icônica custando pouco mais de três mil reais. Pronta. Precisaria de leve funilaria.
Mas e a Corujinha? Imaginei-me até em um programa no Youtube semelhante ao do Seinfeld (maravilhoso, por sinal) rodando com pessoas na Kombi e seguindo para Casa Porto, la no Centro do Rio, encontrando-me com Simas e Vidal. Conversas. Diálogos. Deixando-as livre. Como a Kombi.
Ela precisa deste resgaste. Por isso escrevo sobre ela. É uma forma de trazê-la de volta. Não sou filho de latifundiário – este comumente coleciona carros antigos -, não venho de família rica, nem vou me enveredar em um empréstimo para o bendito carrinho. Mas, lá ele o está, inerte, debilitado, deitado de lado, portas caídas, colunas inexistentes. O motor, aquele coração metalizado e ritmado, parece estar em diferente prestação com o tempo. O carro o envolveu. Parece que o ninou. Ele não tem as mesmas deformações das intempéries. Está ali, domado pela inércia somente, mas a casca traduz outra alma. Sua cor é vistosa, sua correia não apresenta escaras, fissuras, cicatrizes de uma entrega. Há um símbolo sutil da sobrevivência. No fundo, me lembra mais o rosto de um adolescente tomado por acnes. Parece deteriorado, carcomido, invalidado. Mas é só carcaça temporária. Lá no fundo, no âmago, esconde a singularidade da juventude, daquela espécie forte e viril que o tempo não vence.
Kombis e Fuscas não são vencidos pelo tempo. Neste aspecto, o filme Se Meu Fusca Falasse foi implacável em dar esse senso de eternidade ao carrinho. É verdade, aquele motor é eterno. Precisa de pouco para ser muito.
E ao lado de minha casa, há uma Corujinha.
Quem dera se meu bolso fosse maior.