A cidade ainda não amanheceu. Paramos o carro na porta. Você assina os papéis da internação. As luzes estão acesas, o ar condicionado bem frio. Esperamos, sentados, chamarem seu nome. No canto da sala, um piano de cauda. Estranheza. Não é um saguão de hotel; é uma recepção de hospital. Sorte nossa.
Você se senta ao piano. Transforma em câmara o longo salão vazio. Sua música arromba a madrugada. São 5h. O som se espalha em alto volume. Periga acordar a cidade ou, mais amiúde, perturbar os que dormem nos andares acima. Sinalizam-nos para que continue: o som não ressoa além dali. Tudo fica leve.
Subimos para o quarto. Poucas horas depois, você está em cirurgia. Nada grave, adequações em prol da qualidade de vida. Melhoria da respiração e da saúde. Repito isso para mim, enquanto espero notícias. Um filho em mesa de cirurgia é sempre aflitivo. Chegam as primeiras notícias boas, as horas correm. Eu e seu pai nos fazemos companhia. Esperamos as mensagens “acabou, foi tudo bem, já, já, ele está no quarto”.
Minha mãe não era religiosa, não me ensinou a rezar. Mas aprendi. E levei comigo o terço materno, por décadas guardado, para rezar por você e pelos médicos. À distância, imagino uma espécie de esterilização espiritual do centro cirúrgico. Se não existe, inventei. Tenho o terço nas mãos – um jeito de a menina em mim, escondida sob o ar de maturidade, dar as mãos à mãe, à avó. Estou no colo materno, enquanto imagino você, em colo alheio, cercado por nós. A energia das mães – eu, suas avós, Nossa Senhora – e a dos pais – o seu, o meu, o avô paterno. Terra e céu empenhados em sua proteção. Há uma certa arrogância nesse pensar mas mãe pensa sempre hiperbolicamente. Exige do Universo que proteja sua cria. Há camadas de amor também.
“Acabou, foi tudo bem, já, já, ele está no quarto”. As notícias chegam. Você, em seguida. A sensação de alívio e de alegria faz do seu retorno um reencontro. Está tudo ali: o corpo que protege o espírito. O olhar amoroso e entorpecido me mostra que você está dentro. Até o riso censurado pela dor arranja um jeito de fazer-se presente. Sem poder falar, você digita na tela do celular: “não me façam rir”. E rimos, todos, porque ser feliz é num momento assim.
Enebriado, ainda, você não sabe. Pai e mãe podem muito pouco. Não gostamos que nos lembrem da nossa impotência. Filho é criptonita, a fragilidade da vida. Embora seja, mais do que tudo, o combustível da nossa força.
Não podemos envolvê-lo num abraço mas abusamos dos cafunés. Falamos baixo para não incomodá-lo mas nossos olhos dizem tudo. De madrugada, quando pedir-me para ir ao banheiro, este será o maior momento do dia. Dar a mão a um filho, ampará-lo nos primeiros passos, celebrar o seu retorno, sempre, a cada dia, é alegria que não se mede. Sente-se no peito dilatado por amor. Refresca nossa existência.
No dia seguinte, quando você estiver em casa, tudo estará de volta ao seu lugar.
Entre guerras, terremotos, violências, nos lembraremos, juntos, de pedir por aqueles que, mundo afora, ainda esperam seu filho retornar.
Muito linda esta crônica da Ana Lúcia que tem uma maneira particular de falar das coisas simples mas essenciais na nossa vida,lembrei -me de Clarice Lispector que também tirava a beleza do cotidiano.
A voz emocionada é carinhosa de uma mãe é a parte primordial da crônica, a cereja do bolo.Muito obrigada Ana Lúcia por existir e escrever tão bem!
Minha querida amiga Renata, só hoje li seu comentário. Obrigada por tanto carinho ❤️